PraDhammaPitaka~ por Ven. Ajahn Payutto ~

Frequentemente, o modelo básico de atividade econômica é assim representado em livros acadêmicos de economia: desejos ilimitados são controlados por escassez; escassez exige escolha; escolha envolve custo de oportunidade (ou seja, escolher um significa abdicar de outro); e o objetivo final é a máxima satisfação [1]. Os conceitos fundamentais que ocorrem nesse modelo – querer, escolha, consumo e satisfação – descrevem as atividades básicas de nossas vidas a partir de uma perspectiva econômica e têm por base certos pressupostos sobre a natureza humana. Infelizmente, as pressuposições que economistas modernos fazem sobre a natureza humana são meio confusas.

O Buddhismo, por outro lado, oferece uma visão clara e consistente da natureza humana: uma visão que inclui a ética e a dupla natureza do desejo humano. Vamos dar uma olhada em alguns conceitos econômicos sob a luz do pensamento buddhista.

Valores

No capítulo precedente, discutimos os dois tipos de desejo, chanda e taṇhā. Dado que existem dois tipos de desejo, consequentemente existem dois tipos de valores, que podemos denominar como valor verdadeiro e valor artificial. O valor verdadeiro é criado por chanda. Em outras palavras, determina-se que um produto é de valor verdadeiro quando preenche uma necessidade de bem-estar. O valor artificial é criado por taṇhā – é um produto que satisfaz um desejo por prazer.

Para avaliar o valor de um objeto, devemos nos perguntar que tipo de desejo – taṇhā ou chanda – o define. Roupas da moda, joias, carros de luxo e outros símbolos de status contêm um alto grau de valor artificial, porque eles atendem a vaidade das pessoas e o desejo de prazer. Um carro de luxo pode exercer a mesma função de um carro mais barato, mas ele demanda um preço mais elevado, em grande parte por causa de seu valor artificial. Muitos dos prazeres tidos como corretos na sociedade de consumo de hoje – os jogos, as emoções midiáticas e as incalculáveis formas de comida de baixo valor nutricional disponíveis – são criados exclusivamente com a finalidade de satisfazer a taṇhā, não têm nenhum propósito prático em geral e muitas vezes são francamente prejudiciais ao bem-estar. Em sua maior parte, a publicidade promove este valor artificial. Anunciantes estimulam desejos, projetando imagens prazerosas para os produtos que vendem. Eles nos induzem a crer, por exemplo, que quem pode comprar um carro de luxo vai se destacar na multidão e será um membro da alta sociedade, ou que por beber uma determinada marca de refrigerante terá muitos amigos e será feliz.

O verdadeiro valor de um objeto é geralmente ofuscado pelo seu valor artificial. Cobiça e vaidade, o desejo pelo que está na moda e é sensual e atraente, nublam qualquer reconhecimento do valor verdadeiro das coisas. Quantas pessoas, por exemplo, refletem sobre o verdadeiro sentido ou razões para comer ou vestir roupas?

Consumo

A questão do consumo é semelhante à do valor. Devemos distinguir que tipo de desejo nosso consumo se destina a satisfazer: é para atender a necessidade de coisas de verdadeiro valor, ou para saciar os prazeres proporcionados por coisas de valor artificial? Dizem que consumir é uma das metas da atividade econômica. Entretanto, teoria econômica e Buddhismo definem consumo de modo diferente.

Consumo é o alívio ou a satisfação do desejo, nisso estamos de acordo. A economia moderna define consumo simplesmente como o uso de bens e serviços para satisfazer a procura. O Buddhismo, no entanto, faz uma distinção entre dois tipos de consumo, que podem ser denominados como consumo “correto” e consumo “errado”. Consumo correto é a utilização de bens e serviços para satisfazer o desejo de verdadeiro bem-estar. É o consumo com um objetivo e um propósito. O consumo errado surge de tanhā; é a utilização de bens e serviços para satisfazer o desejo de sensações agradáveis ou gratificação do ego.

Enquanto a perspectiva buddhista se baseia em uma visão ampla do fluxo de causas e efeitos, o pensamento especializado da economia identifica apenas parte desse fluxo: a demanda leva ao consumo, que leva à satisfação. Para muitos economistas, esse é o fim; não há necessidade de conhecer o que ocorre depois. Nessa concepção, o consumo pode ser de qualquer coisa, desde que resulte em satisfação. Há pouca consideração sobre se o bem-estar é ou não afetado adversamente por esse consumo.

O consumo pode satisfazer os desejos sensoriais, mas seu verdadeiro objetivo é proporcionar bem-estar. Por exemplo, o nosso corpo depende de alimento para ser nutrido. O consumo de alimentos é, portanto, um requisito para o bem-estar. Para a maioria das pessoas, no entanto, comer também é uma forma de sentir prazer. Se ao consumir alimento alguém experimenta um sabor delicioso, pode-se dizer que satisfez seus desejos. Os economistas tendem a pensar dessa maneira, sustentando que a experiência de satisfação é o resultado final do consumo. Mas aqui a questão crucial é: Qual é o verdadeiro propósito do consumo de alimentos: a satisfação dos desejos ou a obtenção de bem-estar?

Na visão buddhista, quando o consumo aumenta o verdadeiro bem-estar, é dito ser bem sucedido. Por outro lado, se os resultados do consumo resultam apenas em sentimentos de satisfação, então ele é falho. Na pior das hipóteses, o consumo por meio de taṇhā destrói o seu verdadeiro objetivo, que é o de melhorar o bem-estar. Descuidadamente entregando-se a desejos sem ter em conta as repercussões frequentemente leva a efeitos nocivos e a uma perda do bem-estar verdadeiro. Além disso, o rompante de consumo compulsivo nas sociedades de consumo gera uma insatisfação inerente. É uma coisa estranha que a economia, a ciência do bem-estar humano e satisfação, aceite e, na verdade, aplauda o tipo de consumo que realmente frustra a realização dos seus próprios objetivos.

Por outro lado, o consumo apropriado sempre contribui para o bem-estar e forma uma base para o desenvolvimento futuro das potencialidades humanas. Esse é um ponto importante geralmente negligenciado pelos economistas. O consumo guiado por chanda faz muito mais do que simplesmente satisfazer o desejo de uma pessoa, ele contribui para o bem-estar e o desenvolvimento espiritual. Isso também é verdade em escala global. Se todas as atividades econômicas fossem guiadas por chanda, o resultado seria muito mais do que apenas progresso material e uma economia saudável – tais atividades contribuiriam para o todo do desenvolvimento humano e permitiriam à humanidade levar uma vida mais nobre e desfrutar de um tipo mais maduro de felicidade.

Moderação

No coração do Buddhismo está a sabedoria da moderação. Quando o objetivo da atividade econômica é visto como a satisfação dos desejos, a atividade econômica fica em aberto e sem uma definição clara – desejos são infinitos. De acordo com a abordagem buddhista, a atividade econômica deve ser controlada pela qualificação que é dirigida à obtenção do bem-estar, em vez de a “satisfação máxima” procurada pelo pensamento econômico tradicional. O bem-estar enquanto objetivo atua como um controle sobre a atividade econômica. Já não estaremos a lutar uns contra os outros para satisfazer os desejos infinitos. Em vez disso, nossas atividades são dirigidas para a obtenção do bem-estar.

Se a atividade econômica é dirigida dessa forma, os seus objetivos são claros e suas atividades são controladas. Um balanço ou equilíbrio é alcançado. Não há excesso, nenhum consumo excessivo ou superprodução. No modelo econômico clássico, desejos ilimitados são controlados pela escassez, mas no modelo buddhista eles são controlados por uma apreciação da moderação e pelo objetivo do bem-estar. O balanço resultante será, naturalmente, eliminar os efeitos nocivos da atividade econômica descontrolada.

Monges e monjas buddhistas tradicionalmente refletem sobre a moderação antes de cada refeição, recitando esta reflexão:

Sabiamente refletindo, aceitamos a comida doada, não com o propósito de diversão, não pela luxúria ou pelo fascínio do sabor, mas simplesmente para a manutenção do corpo, para a continuidade da existência, para a cessação da sensação dolorosa, para viver a vida superior. Através desta alimentação, nós suprimimos velhas sensações dolorosas de fome e evitamos que novas sensações dolorosas (por comer excessivamente) surjam. Assim nós vivemos sem restrições, sem culpa, e em conforto” [M.I.10; Nd. 496].

O objetivo da moderação não é restrito aos monges: sempre que usamos as coisas, seja comida, roupas ou até mesmo papel e eletricidade, podemos tomar um tempo para refletir sobre o seu verdadeiro propósito, ao invés de usá-las descuidadamente. Refletindo dessa forma podemos evitar o consumo descuidado e, assim, entendermos “a quantidade certa”, o “caminho do meio”.

Também podemos ver o consumo como um meio para um fim, que é o desenvolvimento do potencial humano. Com o desenvolvimento humano como nosso objetivo, nós comemos alimentos não simplesmente pelo prazer que isso proporciona, mas para obtermos a energia física e mental necessária ao crescimento intelectual e espiritual para uma vida mais nobre.

Não consumo

Sem uma dimensão espiritual, o moderno pensamento econômico encoraja o consumo máximo. Ele louva aqueles que comem mais – três, quatro ou mais vezes por dia. Se alguém comesse dez vezes por dia, tanto melhor. Em contraste, uma economia buddhista entende que o não consumo pode contribuir para o bem-estar. Apesar de monges só comerem uma refeição por dia, eles se esforçam por um tipo de bem-estar que é dependente de pouco.

Em dias de Observância, alguns buddhistas laicos também se abstêm de comer após o meio dia e, ao fazê-lo, contribuem para o seu próprio bem-estar. A renúncia da refeição da noite lhes permite passar o tempo na meditação e na reflexão sobre os ensinamentos do Buddha. O corpo fica leve e a mente facilmente fica calma quando o estômago não está cheio. Assim, o Buddhismo reconhece que certas exigências podem ser satisfeitas por meio do não consumo, uma posição que o pensamento econômico tradicional acharia difícil de aceitar. Abster-se de comer pode desempenhar um papel na satisfação de nossas necessidades não materiais, espirituais.

Claro que não se trata de tomar como objetivo comer apenas uma refeição por dia. Tal como o consumismo, o não consumismo é apenas um meio para atingir um fim e não um fim em si mesmo. Se a abstinência não levasse ao bem-estar, então seria inútil, seria apenas uma maneira de nos maltratarmos. A questão não é consumirmos ou não, mas sim se as nossas escolhas levam ao desenvolvimento pessoal.

Excesso de consumismo

A sociedade de hoje encoraja o consumo excessivo. Em seu esforço para encontrar satisfação através do consumo, muitas pessoas pioram sua saúde e prejudicam outros. Beber álcool, por exemplo, satisfaz um desejo, mas pode resultar em doenças, famílias infelizes e acidentes fatais. Pessoas que comem pelo sabor frequentemente comem demais e se tornam doentes. Outros não refletem sobre os valores nutricionais e gastam seu dinheiro com guloseimas. Algumas pessoas até se tornam deficientes em certas vitaminas e minerais, apesar de comerem grandes refeições diariamente (incrivelmente, casos de subnutrição têm sido notificados). Além de não lhes fazerem bem, seu consumo exagerado de comida impede que outras pessoas comam.

Então, não podemos dizer que uma coisa tem valor simplesmente porque proporciona prazer e satisfação. Se satisfação é procurada em coisas que não enriquecem a qualidade de vida, o resultado se torna muitas vezes a destruição do verdadeiro conforto, levando à ilusão e à intoxicação, perda da saúde e do bem-estar.

Um princípio econômico clássico afirma que o valor essencial das mercadorias reside na sua capacidade de trazer satisfação ao consumidor. Aqui, podemos apontar para os exemplos citados acima, onde elevado consumo e grande satisfação podem ambos ter resultados tanto positivos quanto negativos. A perspectiva buddhista é de que o valor de bens e serviços está na sua capacidade de oferecer ao consumidor um sentimento de satisfação por ter melhorado a qualidade da sua vida. Essa cláusula extra é essencial. Quer se trate de bens, serviços ou riquezas, todas as definições, sejam sociais ou pessoais, devem ser revertidas nesta forma.

Contentamento

Embora não seja tecnicamente uma inquietação do ponto de vista da economia, eu gostaria de acrescentar alguns comentários sobre o assunto contentamento. Contentamento é uma virtude que tem sido frequentemente mal compreendida e, no que se refere a consumo e a satisfação, parece merecer uma discussão.

O objetivo tácito da economia é o de uma economia dinâmica onde cada demanda e desejo são supridos e constantemente renovados em um ciclo infindável e sempre crescente. O mecanismo inteiro é abastecido por taṇhā. De uma perspectiva buddhista, essa incansável busca por satisfazer desejos é em si um tipo de sofrimento. O Buddhismo propõe a cessação desse tipo de desejo, ou contentamento, como um objetivo mais hábil.

Os economistas tradicionais poderiam provavelmente rebater dizendo que, sem desejo, toda a economia poderia chegar a um estancamento. Porém, isso é baseado na falta de entendimento da natureza do contentamento. As pessoas entendem mal o contentamento porque falham em distinguir entre os dois diferentes tipos de desejo: taṇhā e chanda. Elas os colocam juntos e, considerando-os ‘contentamento’, os rejeitam a ambos. Uma pessoa satisfeita passa a ser vista como quem nada quer em absoluto. É aí que elas erram.

Obviamente, pessoas contentes terão menos desejos do que as descontentes. No entanto, a definição correta de contentamento deve ser qualificada pela determinação de que ela significa apenas ausência de desejo superficial, que é tanhā; chanda, o desejo por verdadeiro bem-estar, continua. Em outras palavras, o caminho ao contentamento real implica em reduzir o desejo artificial por prazeres sensoriais, enquanto ativamente se encoraja e apoia o desejo por qualidade de vida.

Estes dois processos – reduzir taṇhā e aumentar chanda – se encorajam mutuamente. Quando estamos satisfeitos com as coisas materiais, nós poupamos tempo e energia que poderiam, do contrário, ser desperdiçados procurando objetos de tanhā. O tempo e energia que poupamos podem ser aplicados no desenvolvimento do bem-estar, que é o objetivo de chanda. Quando se trata de desenvolver condições habilidosas, no entanto, contentamento não é uma qualidade benéfica. Condições habilidosas devem ser atingidas através de esforço. Muito contentamento do ponto de vista de chanda facilmente se transforma em complacência e apatia. Neste ponto, o Buddha esclarece que sua própria realização da iluminação foi o resultado de duas qualidades: esforço diligente e falta de contentamento com as boas condições de sua vida. [D.III.214; A.I.50; Dhs. 8, 234]

Trabalho

Buddhismo e economia tradicional também têm diferentes entendimentos sobre o papel do trabalho. A moderna teoria econômica ocidental é baseada na visão de que o trabalho é algo que somos obrigados a fazer para obter dinheiro e consumir. É durante o tempo que não estamos trabalhando, ou “hora de lazer”, que nós experimentaremos felicidade e satisfação. Trabalho e satisfação são considerados princípios separados e, geralmente, em oposição.

O Buddhismo, no entanto, reconhece que o trabalho pode ser ou não satisfatório, dependendo de qual dos dois tipos de desejo está motivando isso. Quando o trabalho decorre do desejo de bem-estar verdadeiro, há satisfação nos resultados diretos e imediatos do próprio trabalho. Em contraste, quando o trabalho é motivado pelo desejo de objetos prazerosos, então os resultados diretos do trabalho em si não são tão importantes. Com essa atitude, o trabalho é simplesmente uma necessidade inevitável para se obter o objeto desejado. A diferença entre essas duas atitudes determina se o trabalho vai ou não contribuir diretamente para o bem-estar. No primeiro caso, o trabalho é uma atividade potencialmente satisfatória, e, no segundo, uma tarefa necessária.

Como exemplo dessas duas atitudes diferentes, imaginemos dois investigadores. Ambos estão investigando meios naturais de controle de pragas para uso agrícola. O primeiro investigador, o Sr. Smith, deseja os frutos diretos da sua pesquisa – conhecimento e sua aplicação prática – e tem orgulho no seu trabalho. As descobertas e os avanços que ele faz dão-lhe uma sensação de satisfação.

O segundo, o Sr. Jones, só trabalha pelo dinheiro e promoções. Conhecimento e sua aplicação, os resultados diretos do seu trabalho, não são realmente o que deseja; eles são apenas o meio através do qual ele pode finalmente obter dinheiro e posição. O Sr. Jones não aprecia o seu trabalho, ele o realiza porque sente que tem de fazê-lo.

O trabalho realizado para satisfazer o desejo por bem-estar pode oferecer satisfação inerente, pois é apreciado em seu próprio benefício. Realização e progresso no trabalho levam a um sentido crescente de satisfação em cada estágio do desenvolvimento profissional. Na terminologia buddhista, isso é chamado trabalhar com chanda. Inversamente, trabalhar a partir do desejo por prazer é chamado trabalhar com tanhā. Aqueles que trabalham com taṇhā estão motivados pelo desejo de consumir. Mas uma vez que é impossível consumir e trabalhar ao mesmo tempo, o trabalho provê pouca alegria e satisfação. Também deve ser apontado que o trabalho nesse caso adia a obtenção de satisfação, e como tal, será visto como um impedimento para ela. Quando o trabalho é visto como um impedimento ao consumo, pode se tornar intolerável. Nos países em desenvolvimento, isso é prontamente observado na extensão das dívidas de crédito e corrupção, em que os consumidores não conseguem tolerar o intervalo entre trabalhar e consumir os objetos de seus desejos.

Em economias industriais modernas, muitos empregos excluem a satisfação, ou a tornam muito difícil, pela sua própria natureza. Empregos em fábricas podem ser maçantes, pouco exigentes, sem sentido, até mesmo perigosos para a saúde. Produzem tédio, frustração e depressão, os quais têm efeitos negativos sobre a produtividade. No entanto, mesmo em tarefas domésticas ou insignificantes, há uma diferença entre trabalhar com taṇhā e trabalhar com chanda. Mesmo na mais monótona das tarefas, onde se pode ter dificuldade em gerar um sentimento de orgulho no foco em que se trabalha, o desejo de executar bem a tarefa, ou a sensação de orgulhar-se por suas próprias iniciativas, pode ajudar a aliviar a monotonia, e até mesmo contribuir com algum sentimento de realização com o trabalho: mesmo que este possa ser monótono, sente-se que pelo menos se está desenvolvendo boas qualidades como perseverança e se é capaz de obter certo entusiasmo pelo trabalho.

Como vimos, a realização de taṇhā reside na procura e na obtenção de objetos que proporcionem sentimentos prazerosos. Embora essa busca possa envolver ação, o objetivo de taṇhā não está diretamente relacionado de maneira causal à ação empreendida. Olhemos para duas tarefas diferentes e examinemos a causa e o efeito das relações envolvidas: 1) o senhor Smith varre a rua e recebe US$ 500 por mês; 2) se a pequena Suzie terminar o livro que está lendo, seu pai a levará ao cinema.

Num primeiro momento, pode parecer que varrer a rua é o motivo pelo qual Mr. Smith recebe seu pagamento, ou seja, varrer a rua é a causa e o dinheiro é o resultado. Mas na verdade, essa é uma conclusão equivocada. Corretamente falando, diríamos assim: a ação de varrer a rua é o que faz a rua estar limpa; a limpeza da rua é o requisito para que Mr. Smith receba seu pagamento, baseado num acordo entre empregador e empregado.

Todas as ações têm resultados que surgem como uma consequência natural. O resultado natural de varrer a rua é uma rua limpa. No contrato entre empregador e empregado, uma estipulação é adicionada a esse resultado natural, portanto, varrer a rua também traz a obrigação de um pagamento em dinheiro. Esta é uma lei feita pelo homem ou artificial. No entanto, o dinheiro não é o resultado natural de varrer a rua: algumas pessoas podem varrer uma rua e não receber dinheiro por isso, enquanto muitas outras pessoas recebem salários sem ter que varrer ruas.

O dinheiro é algo socialmente inventado, artificial. Muitos problemas sociais contemporâneos decorrem de uma confusão entre os resultados naturais das ações e as convenções humanas a elas adicionadas. As pessoas começam a pensar que um pagamento em dinheiro realmente é o resultado natural de varrer uma rua, ou, para usar outro exemplo, que um bom salário, ao invés de conhecimento médico, é o resultado natural de estudar medicina.

Quanto à pequena Suzie, pode parecer que concluir o livro é a causa, e ir ao cinema com o pai o resultado. Mas, na verdade, terminar o livro é simplesmente uma estipulação na qual está baseada a ida ao cinema. O verdadeiro resultado da leitura do livro é a obtenção de conhecimento.

Ampliando esses exemplos, se o trabalho do Sr. Smith é dirigido unicamente por taṇhā, tudo o que ele quer são os seus $500, não a limpeza da rua. Na verdade, ele não quer mesmo varrer a rua, mas, uma vez que é uma condição para receber o seu salário, ele o fará. Quanto à pequena Suzie, se o seu verdadeiro desejo é ir ao cinema (não o ler o livro), então a leitura não lhe trará qualquer satisfação por si mesma; ela só lê porque é uma condição para ir ao cinema.

Quando as pessoas trabalham apenas por tanhā, seu desejo verdadeiro é o consumo e não a ação. Suas ações – nesse caso, varrer e ler – são vistos como meios para obter os objetos do desejo – o salário e uma ida ao cinema. Por sua vez, quando trabalham com chanda, o Sr. Smith tem orgulho na (i.e., deseja) limpeza da rua e a pequena Suzie almeja o conhecimento contido no livro. Com chanda, seu desejo é pela ação e pelos resultados verdadeiros dessa ação.

Limpeza é o resultado natural de varrer a rua, e conhecimento é o resultado natural de se ler o livro. Quando a ação for concluída, surge o resultado, natural e simultaneamente. Quando o Sr. Smith varre a rua, o que segue é uma rua limpa, e isso ocorre sempre que ele varre. Quando a pequena Suzie lê um livro, o conhecimento surge, e surge sempre que ela lê o livro. Com chanda, o trabalho é intrinsecamente satisfatório, porque isso em si mesmo é a concretização do resultado desejado.

Assim, o objetivo de chanda é ação e o bom resultado que surge a partir dela. Quando suas ações são motivadas por chanda, o Sr. Smith se aplica em varrer a rua, independentemente de seu salário mensal, e a pequena Suzie vai ler seu livro, mesmo sem o papai ter prometido levá-la ao cinema. (Na realidade, é claro, a maioria das pessoas trabalha pelos salários, que são uma necessidade, mas também temos a opção de ter orgulho do nosso trabalho e se esforçar para fazê-lo bem, o que é chanda, ou fazê-lo superficialmente simplesmente por salário. Assim, em situações da vida real, a maioria das pessoas está motivada por diferentes graus tanto de taṇhā quanto de chanda).

Como vimos, ações motivadas por chanda e ações motivadas por taṇhā levantam resultados muito diferentes, ambos objetiva e eticamente. Quando somos motivados pelo taṇhā e estamos trabalhando simplesmente para conseguir um objeto não relacionado ou meios de consumo, nós podemos ser tentados a conseguir o objeto de consumo de outras maneiras que envolvem menos esforço. Se conseguirmos obter o objetivo sem ter feito completamente nenhum trabalho, melhor. Se for absolutamente necessário trabalhar para o objetivo, contudo, vamos apenas fazê-lo muito relutantes e superficialmente.

O resultado extremo disto é a atividade criminal. Se o Sr. Smith quer dinheiro, mas não deseja (chanda) trabalhar, pode achar intolerável trabalhar por dinheiro e então recorre ao roubo. Se a pequena Suzie quer ir ao cinema, mas não suporta ler o livro, talvez roube o dinheiro da sua mãe e vá ao cinema sozinha.

Só com taṇhā para obter um salário, mas sem chanda para fazer o seu trabalho, as pessoas apenas simularão cumprir os seus deveres, fazendo apenas o suficiente para viver. O resultado é a apatia, a preguiça e pouco trabalho. O Sr. Smith apenas fará de conta que varre as ruas diariamente até chegar o dia do pagamento e a pequena Suzie apenas lerá o livro para mostrar ao papai que o acabou, mas não absorve o que leu, ou talvez o engane, dizendo que leu o livro quando de fato não o fez.

Quando esse tipo de negligência e desonestidade surgem no ambiente de trabalho, verificações secundárias devem ser estabelecidas para monitorar o trabalho. Essas medidas atingem os sintomas, mas não a causa, e apenas aumentam a complexidade da situação. Por exemplo, pode ser necessário colocar um supervisor para inspecionar o trabalho do Sr. Smith, e verificar suas horas de trabalho, ou o irmão da pequena Suzie pode precisar verificar se ela está lendo o livro. Isso se aplica aos empregadores e aos empregados: a justiça do trabalho deve existir para prevenir que empregadores gananciosos ou irresponsáveis explorem seus trabalhadores e os faça trabalhar em condições desumanas ou por salários injustos. Quando taṇhā é a força motivadora, trabalhadores e empregadores estão presos numa disputa interminável, onde cada lado está tentando obter o máximo para si dando o mínimo para o outro.

Taṇhā é agravada a um grau considerável pelas influências sociais. Por exemplo, quando os proprietários dos meios de produção são cegamente motivados por um desejo de ficarem ricos através do menor esforço possível, é muito pouco provável que os trabalhadores terão algum chanda. Será mais provável que sigam o exemplo de seus empregadores, tentando obter tanto quanto lhes for possível pelo menor esforço. Essa tendência pode ser observada no ambiente de trabalho moderno. Aparentemente, por outro lado, quanto mais abastada se torna a sociedade, mais esta tendência é fomentada – quanto mais temos, mais queremos. Este é um resultado do crescimento desenfreado de taṇhā e a falta de qualquer alternativa viável. Por sua vez, os valores do contentamento e paz interiores da mente parecem ter sido completamente perdidos na sociedade moderna.

Em alguns casos raros, contudo, ouvimos empregados e empregadores que trabalham juntos com chanda. Isso acontece quando o empregador é responsável, capaz e atencioso, obtendo assim a confiança e a afeição dos funcionários, que, em troca, retribuem sendo harmoniosos, diligentes e comprometidos com seus trabalhos. Houve até mesmo casos de empregadores que eram tão atenciosos para com seus empregados que, quando suas empresas chegaram perto de falir, os empregados solidariamente fizeram alguns sacrifícios e trabalharam o máximo possível para fazer com que fossem lucrativas novamente. Ao invés de fazer demandas sobre salários e benefícios, eles estavam dispostos a assumir cortes em seus salários.

Produção e não produção

A palavra “produção” é enganosa. Tendemos a pensar que através da produção novas coisas são criadas, quando, na verdade, apenas mudanças de estado são efetuadas. Uma substância ou forma de energia é convertida em outra. Essas conversões implicam a criação de um novo estado pela destruição de um antigo. Assim, a produção é sempre acompanhada de destruição. Em alguns casos, a destruição é aceitável, em outros, não. A produção é apenas verdadeiramente justificada quando o valor da coisa produzida supera o valor do que é destruído. Em alguns casos, pode ser melhor se abster de produzir.

Isso é invariavelmente verdadeiro para as indústrias cujos produtos são para fins de destruição. Em fábricas de armas, por exemplo, não produção é sempre a melhor escolha. Nas indústrias onde a produção acarreta na destruição dos recursos naturais e na degradação ambiental, a não produção às vezes é a melhor escolha. Para escolher, é preciso distinguir entre a produção com resultados positivos e a produção com resultados negativos; a produção que aumenta o bem-estar e aquela que o destrói.

A esta luz, a não produção pode ser uma atividade econômica útil. Uma pessoa que produz muito pouco em termos materialistas pode, ao mesmo tempo, consumir muito menos recursos naturais e levar uma vida que é benéfica para o mundo ao seu redor. Tal pessoa é de mais valor do que aquele que diligentemente consome grandes quantidades de recursos naturais, enquanto produzem bens que são prejudiciais para a sociedade. Mas a economia moderna nunca poderia fazer tal distinção; ela exalta uma pessoa que produz e consome (ou seja, destrói) grandes quantidades, mais do que aquela que produz e consome (destrói) pouco.

Na economia da era industrial o termo ‘produção’ recebeu um significado muito limitado. Ele é tomado para se referir apenas àquelas coisas que podem ser compradas e vendidas – uma luta de touro, onde as pessoas pagam dinheiro para ver os touros mortos, é vista como uma contribuição para a economia, enquanto uma criança ajudando um idoso a atravessar a rua não é; um comediante profissional contando piadas no palco, relaxando o seu público e lhes dando um momento agradável, é tomado como sendo economicamente produtivo, porque o dinheiro muda de mãos, enquanto um funcionário de escritório com uma disposição muito alegre não é considerado por ter produzido em razão de sua alegria para com aqueles ao seu redor.

Também não há qualquer contabilização dos custos econômicos das ações e palavras agressivas que continuamente criam tensão no local de trabalho, e então as pessoas afetadas precisam encontrar alguma maneira de aliviá-las com alguma diversão, tal como irem assistir um comediante.

Competição e Cooperação

A economia moderna é baseada na suposição de que é da natureza humana competir. O Buddhismo, por outro lado, reconhece que seres humanos são capazes de ambos, competição e cooperação.

A competição é natural: no esforço para satisfazer o desejo pelo prazer – motivadas pela taṇhā – as pessoas vão competir ferozmente. Nessas ocasiões elas querem obter o máximo possível, não tendo nenhum sentido de suficiência ou satisfação. Se puderem obter o objeto desejado sem ter que compartilhá-lo com qualquer outra pessoa, tanto melhor. Inevitavelmente a concorrência é intensa, o que é natural para a mente impulsionada pela taṇhā.

Esse instinto competitivo pode ser redirecionado para induzir a cooperação. Pode-se unir os membros de um determinado grupo, incitando-os a competir com outro grupo. Por exemplo, gerentes de empresas, por vezes, reúnem os seus funcionários para trabalharem juntos a fim de vencer os seus concorrentes. Mas essa cooperação é inteiramente baseada na concorrência. O Buddhismo chamaria isso de “cooperação artificial”.

Cooperação verdadeira surge com o desejo de bem-estar – com chanda. O desenvolvimento humano demanda que entendamos como taṇhā e chanda nos motivam e que mudemos nossas energias de concorrência para os esforços de cooperação para resolver os problemas que o mundo enfrenta e para realizar um objetivo mais nobre.

Escolha

“Se um determinado querer é uma verdadeira necessidade, um desejo fantasioso ou um desejo bizarro, isso não é de importância para a economia. Nem faz parte da economia julgar se tais desejos deveriam ser satisfeitos” [2], dizem os textos de economia, mas sob a perspectiva buddhista, as escolhas que fazemos são de extrema importância, e essas escolhas requerem certa apreciação das opções disponíveis. A escolha é uma função da intenção, o que é o coração do kamma, um dos ensinamentos centrais do Buddhismo. A influência do kamma afeta não apenas a economia, mas todas as áreas de nossas vidas e de nosso ambiente social e natural.

Decisões econômicas, ou escolhas, que carecem de reflexão ética são kamma ruim – elas tendem a trazer resultados indesejáveis. Boas decisões econômicas são aquelas baseadas em uma consciência dos custos nos níveis individuais, sociais e ambientais, e não apenas em termos de produção e consumo. Estas decisões econômicas são kamma. Toda vez que uma decisão econômica é feita, kamma é feito, e o processo de fruição é imediatamente colocado em movimento, para melhor ou para pior, para o indivíduo, para a sociedade e para o meio ambiente. Assim, é importante reconhecer a diferença qualitativa entre os diferentes caminhos de ação e fazer nossas escolhas com sabedoria.

Perspectiva de Vida

Gostaria agora de dar um passo atrás e olhar para a economia de uma perspectiva um pouco mais ampla. Temos discutido as diferentes atividades econômicas. Podemos agora perguntar: qual é a finalidade dessas atividades? O que estamos buscando com todo esse comprar e vender, produzir e consumir? Ou podemos fazer uma pergunta ainda mais grandiosa: Qual é de fato o propósito da vida?

Todas as pessoas têm pontos de vista sobre estas questões, embora a maioria de nós não tenha consciência deles. Ensinamentos buddhistas enfatizam que essas visões exercem uma tremenda influência sobre as nossas vidas. A palavra em pāli para pontos de vista é diṭṭhi. Esse termo abrange todos os tipos de opiniões em muitos níveis diferentes – as nossas opiniões e crenças pessoais; as ideologias, visões religiosas e políticas adotadas por grupos; e as atitudes e visões de mundo mantidas por culturas e sociedades inteiras.

Noções levam a consequências muito além do domínio dos estados mentais e discurso intelectual. Como a ética, noções estão ligadas à corrente de causas e condições. Elas são formações mentais “subjetivas” que inevitavelmente condicionam eventos em realidade “objetiva”. Em um nível pessoal, sua visão de mundo afeta os acontecimentos da vida. Em nível nacional, pontos de vista políticos e os costumes sociais da sociedade afetam a condição e a qualidade de vida do dia-a-dia.

O Buda avisou que opiniões são potencialmente as mais perigosas de todas as condições mentais. Noções insalubres podem causar danos inimagináveis. A violência das Cruzadas, o Nazismo e o Comunismo, para nomear apenas três desastrosos movimentos, foram alavancados por extremas noções insalubres. Noções saudáveis, por outro lado, são as mais benéficas das condições mentais. Como disse o Buddha: “Monges, não vejo outra condição que seja tanto um causa das condições insalubres ainda não surgidas, quanto o desenvolvimento e fruição das condições insalubres que já surgiram, do que uma opinião equivocada…” [A.I.30]

Isso exige a pergunta: qual visão da vida está por trás da economia moderna? Ela é benéfica ou prejudicial? Com o risco de superssimplificar, digamos que o objetivo da vida moderna é encontrar a felicidade. Está noção é tão abrangente nas sociedades modernas que raramente é até mesmo reconhecida, quanto mais examinada ou questionada. O próprio conceito de “progresso” – social, econômico, científico e político – assume que o objetivo mais alto da sociedade é alcançar um estado onde todos serão felizes. A Declaração de Independência dos Estados Unidos poeticamente corporifica esse ideal ao declarar o direito da humanidade à “vida, liberdade e busca da felicidade”.

Embora, sem dúvida, seja uma nobre aspiração, o ponto de vista de que a felicidade é a meta da vida revela uma confusão fundamental sobre a verdade da vida. “Felicidade” nunca deixa de ser uma qualidade mal definida, elusiva. Muitas pessoas igualam felicidade ao sentimento de prazer e satisfação dos seus desejos. Para tais pessoas a felicidade continua a ser um estado remoto, algo fora de si, um futuro prêmio que deve ser perseguido e capturado. Porém, felicidade não pode ser obtida pela busca, mas apenas através de fazer surgirem as causas e condições que levam a ela, e estas são o desenvolvimento pessoal e mental.

Do ponto de vista buddhista, as pessoas geralmente confundem taṇhā – seus inquietantes desejos por satisfação e prazer – com a procura pela felicidade. Essa é seguramente uma visão pouco hábil, pois o desejo de taṇhā nunca poderá ser saciado. Se a procura por felicidade equivale à procura pelos objetivos de taṇhā, então a vida torna-se miserável. Para ver as consequências desta visão pouco feliz, é preciso apenas testemunhar a depressão e angústia dos cidadãos em muitas das cidades modernas, que são cheias de distrações sem fim e centros de prazer. Ao invés de conduzir ao contentamento e ao bem-estar, a busca pela felicidade muitas vezes gera inquietação e exaustão nos indivíduos, conduz a brigas na sociedade e ao consumo não sustentável do meio ambiente.

Por outro lado, a visão buddhista da vida é muito menos idealista e muito mais prática. O Buddha disse simplesmente: “Há sofrimento” [Vin.I.9; SV421; Vbh.99]. Esta foi a primeira das suas Quatro Nobres Verdades, princípios centrais do Buddhismo. Ele passou a descrever o que é sofrimento: “O nascimento é sofrimento; velhice é sofrimento; doença é sofrimento, a morte é sofrimento; tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero são sofrimento; separação do amado é sofrimento, obter o que não se deseja é sofrimento; não obter o que se deseja é sofrimento…”

Há poucos questionamentos de que essas coisas existem na vida e são todas desagradáveis, mas a tendência de nossa sociedade é negá-las. Morte, particularmente, é raramente considerada ou comentada como uma inevitabilidade pessoal. Seja como for, negar essas coisas não fará com que desapareçam. Por isso o Buddha disse que o sofrimento é algo que deve ser reconhecido. A primeira Nobre Verdade é o reconhecimento de que todas as coisas devem passar e que, no final, não há segurança dentro do mundo material. Esse é o tipo de verdade que o Buddha encorajou as pessoas a encararem – os dolorosos óbvios e fundamentais fatos da vida.

A segunda Nobre Verdade explica a causa do sofrimento. O Buddha disse que o sofrimento é causado pelo desejo sedento baseado na ignorância (ou seja, taṇhā). Em outras palavras, a causa do sofrimento é uma condição interna. Nós podemos perguntar: “O desejo sedento causa o sofrimento da velhice?”: não é o desejo que causa a velhice, o desejo por juventude é que faz da velhice um motivo de sofrimento. A velhice é inevitável; o desejo não é. O Buddha disse que o desejo pode ser eliminado, o que nos leva a terceira Nobre Verdade, que aborda a cessação do sofrimento. Com o abandono completo e total do desejo sedento, o sofrimento cessa. Mas como fazer isso? O Buddha explica isso na quarta Nobre Verdade. É o Nobre Caminho Óctuplo para a cessação do sofrimento, através do treinamento do corpo, fala e mente, de acordo com o código buddhista da Noção Correta, Pensamento Correto, Fala Correta, Ação Correta, Meio de Subsistência Correto, Esforço Correto, Vigilância Correta, Concentração Correta.

É muito evidente a partir das Quatro Nobres Verdades que a visão buddhista da vida está em desacordo com a visão comum das sociedades modernas. Enquanto que o Buddhismo diz: “Há sofrimento”, as sociedades modernas dizem: “Há felicidade, e eu a quero agora!” As implicações dessa simples mudança na percepção são simplesmente enormes. Uma sociedade que vê o propósito da vida na busca da felicidade é aquela que está indiferentemente perseguindo algum sonho futuro. A felicidade é vista como algo inerente que faz falta e deve ser encontrada em outro lugar qualquer. Dessa visão advém insatisfação, impaciência, contenção, incapacidade de lidar com o sofrimento e uma falta de atenção para com o momento presente.

Por outro lado, com uma visão de vida que reconhece a realidade do sofrimento, nós prestamos mais atenção ao momento presente de tal forma a reconhecer os problemas assim que surgem. Nós colaboramos com outras pessoas na resolução de problemas ao invés de competir com elas para obter felicidade. Tal visão também influencia as nossas escolhas econômicas. Nossa produção e consumo são incentivados menos na direção da busca de um sentido de gratificação (tanhā) e mais na direção de aliviar o sofrimento (chanda). Se essa visão buddhista fosse adotada em escala nacional ou global, ao invés de ser usada para satisfazer todas as demandas, nossas economias estariam se esforçando em criar um estado livre do sofrimento ou um estado no qual prima o desfrute da felicidade (exatamente como um corpo saudável é aparelhado para desfrutar a felicidade).

É somente por meio da compreensão do sofrimento que podemos efetivar a possibilidade da felicidade. Aqui, o Buddhismo faz distinção entre dois tipos de felicidade: felicidade dependente e felicidade independente. Felicidade dependente é a felicidade que requer um objeto externo. Inclui qualquer felicidade dependente do mundo material, incluindo riqueza, família, honra e fama. Felicidade dependente, sendo dependente de coisas que nunca podem ser nossas em um sentido último, é instável e incerta.

Felicidade independente, por outro lado, é a felicidade que surge de dentro de uma mente que foi treinada e que atingiu algum grau de paz interior. Tal felicidade não é dependente de objetos externos e é muito mais estável do que a felicidade dependente.

Felicidade dependente leva à competição e ao conflito na luta por adquirir bens materiais. Qualquer felicidade decorrente de tal atividade é um tipo contestável de felicidade. Há, no entanto, um terceiro tipo de felicidade que, embora não tão exaltado como o verdadeiramente independente, é, no entanto, mais hábil que o tipo contestável. Trata-se de uma felicidade que é altruísta, direcionada ao bem-estar e motivada pela boa vontade e compaixão. Através do desenvolvimento pessoal, pode-se apreciar este verdadeiro tipo de felicidade – o desejo de trazer felicidade aos outros (o que no Buddhismo chamamos mettā). Com este tipo de felicidade, podemos experimentar alegria pela felicidade dos outros, assim como os pais se sentem com a felicidade dos seus filhos. Esse tipo de felicidade pode ser chamado de “felicidade harmoniosa”, distinta do outro tipo de felicidade. É menos dependente da aquisição de bens materiais e surge mais de dar do que de receber. Embora tal felicidade não seja verdadeiramente independente, ela é muito mais habilidosa que a felicidade resultante da aquisição egoísta.

O nível mais seguro de felicidade é a libertação que resulta da iluminação, que é irreversível. Mas até mesmo treinar a mente, pelo estudo e prática da meditação, e alcançar algum contentamento interior é um poderoso antídoto para a insatisfação da sociedade de consumo. E com a clareza da paz interior vem um insight sobre uma das profundas ironias da vida: ao lutar pela felicidade, criamos sofrimento; entendendo o sofrimento, encontramos a paz.

Notas:

1. De “Economics ‘73-‘74’”. Vários colaboradores. Guildford: The Dushkin Publishing Group, Inc. Connecticut, 1973.

2. De “Economics ‘73-‘74’”. Vários colaboradores. Guildford: The Dushkin Publishing Group, Inc. Connecticut, 1973.


Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
em acordo com Buddhadhamma Foundation
Para Distribuição Gratuita
© 2014 Edições Nalanda

Nota: “Escritos sobre o Buddha Dhamma” consiste de um conjunto de escritos de um dos mais respeitados monges da Thailândia contemporânea, Venerável Ajahn Payutto.


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