O que é o Amor?~ Ven. S. Dhammika ~

Poucas experiências humanas têm sido mais ponderadas, mais discutidas e mais desejadas que o amor. A maior parte das canções no rádio é sobre ele; uma boa porcentagem de literatura popular e filmes lida com esse assunto. Místicos, teólogos, filósofos e mais recentemente psicólogos tentaram explicá-lo. Na intensificação de algum conflito, ou posteriormente, líderes religiosos e outros indivíduos preocupados dizem coisas do tipo: “Se ao menos nós pudéssemos aprender a nos amar uns aos outros…”.

A Bíblia afirma que a essência do mais importante ser no universo, Deus, é amor. Claramente essa experiência, independente de sua natureza, é a principal preocupação da humanidade e sempre foi. Mas apesar de toda a atenção que tem sido dada a isso, o que o amor é exatamente permanece intangível. Podemos dizer que amamos nossos pais, nossos filhos e nosso próximo. Embora é claro que os amores que temos por essas diferentes pessoas compartilham características em comum, é bastante claro que elas devem ter importantes diferenças também. Amar um cônjuge inclui intimidade sexual, ao passo que amar um irmão, ou uma criança, não. É bastante normal dizer coisas tais como: “Amamos a Espanha” ou “Amo Mozart”, mas novamente os componentes de tais amores devem ser muito diferentes daqueles que são sentidos em relação a uma pessoa de carne e osso. Mais complicado ainda é o fato de que as pessoas às vezes dizem que amam e até pensam que amam, quando na verdade não amam. Eu já ouvi conversas começando com “Realmente amo você, mas …” e, em seguida, vir uma lista de recriminações amargas e reclamações irritadas

Então, o que é essa coisa que chamamos de amor? Muitas descrições de amor são mais panegíricas ou elogiosas que esclarecedoras. “Amor é a poesia dos sentidos”. “Amor é a beleza da alma”. “Amor é a alegria do bem, a maravilha dos sábios, o assombro dos deuses”. Expressões como essas, e qualquer dicionário de citações irá incluir muitas delas, sugerem que o amor evoca sentimentos fortes e fantasias coloridas, mas elas não nos contam realmente nada útil sobre ele. Passando da ambiguidade calorosa para a precisão de cabeça fria, há muitas tentativas de definir ou descrever o amor. Provavelmente a mais famosa dessas tentativas na tradição espiritual ocidental é aquela feita por Paulo de Tarso em sua epístola aos Coríntios. Paulo usava a palavra grega agape, que normalmente é traduzida como caridade ou amor ou, às vezes, amor fraterno. “O amor é paciente, o amor é prestativo, não é invejoso, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” [1].

Das 14 características dadas aqui por Paulo, mais da metade são negativas, isto é, elas nos dizem o que o amor não é ou o que ele não faz, e não o que é e o que faz. Isso provavelmente não é um acidente. Paulo percebeu, como muitos antes e desde então, que pode ser mais fácil definir algumas coisas pelo que elas não são mais do que pelo que são, e isso é particularmente verdadeiro para a qualidade multifacetada do amor. O Buddha ocasionalmente fazia o mesmo, usando palavras para o amor, como avyāpada, literalmente sem ódio, ou adosa, não-má-vontade. Quanto às qualidades positivas do amor mencionadas por Paulo, a maioria das pessoas concordaria com ele que paciência, bondade, humildade e altruísmo são características do amor, embora eu suspeite que outros associariam que acreditar e esperar de tudo com ingenuidade e pensamento positivo.

Um texto buddhista antigo, o Culla Niddesa, define assim o amor: “O amor significa ter uma natureza amigável e comportar-se com simpatia (afabilidade)” [2]. Embora as vezes afetado, o entendimento de Buddhagosa aqui é significativo uma vez que vê o amor como sendo primariamente sobre fazer alguma coisa para ou pelos outros, como sendo motivado pela preocupação pelo bem-estar deles (hitākārappavattilakkhaṇā mettā). Também interessante é sua ideia de que por sua própria natureza os seres vivos são amáveis ou apropriados objetos de amor (manāpabhāva).

Quando chegamos aos tempos modernos começamos a ter explorações acerca do amor que são mais penetrantes. O Dicionário de Oxford diz que o amor é “um intenso sentimento de profunda afeição” ou “um profundo apego romântico ou sexual por alguém”. Mas certamente há mais sobre amor do que apego e anseio sexual. Sigmund Freud observava o amor com olhar cético e desconfiado e o colocava de lado como sendo um “sexo de objetivo inibido”. Para ele o amor era uma forma mais refinada para o impulso sexual. Martin Luther King chamou o amor de um “reconhecimento de que tudo está inter-relacionado. Toda a humanidade está envolvida em um único processo, e todos os homens são irmãos”. É improvável que algo assim passe pelas mentes de duas pessoas com as cabeças reviradas uma pela outra. O popular escritor M. Scott Peck entendeu o amor como sendo “o intento de esforçar-se pelo propósito de nutrir o desenvolvimento espiritual seu ou do outro” [3].

O problema desta última definição e da definição de King é que elas praticamente excluem da equação os parceiros românticos e os amigos íntimos. É possível ter relações profundamente amorosas com as pessoas sem qualquer aspiração espiritual. O psiquiatra e escritor Colin Murry Parkes definiu o amor como “o laço psicológico que vincula uma pessoa a outra por um longo período” [4]. Essa ampla definição inclui a maioria das diversas expressões de amor, mas também pode definir o ódio. Os membros da Ku Klux Klan também devem ter laços psicológicos entre si, mas ninguém associaria seu comportamento com o amor.

Alguns pensadores modernos veem a característica determinante do amor como “forte preocupação”, “apego” ou “entrega de valor”. Mais uma vez, a maioria dos tipos de amor tem essas características, mas eles têm outras importantes ou mais acentuadas também. Outros observadores têm enfatizado que amor é, principalmente, uma atitude de bondade, inclusive por desafetos. O excêntrico inglês Quentin Crisp costumava dizer que “amor é fazer um esforço para ser legal com pessoas que você não gosta”. Essa e outras definições similares sugerem que amor não é, necessariamente, um sentimento afetuoso conectando com outrem ou outros, mas um esforço contínuo para romper, suprimir ou resistir à tendência de revidar a pessoas que consideramos condenáveis.

Todas essas definições e descrições têm suas limitações. Afinal, nem todo amor é romântico ou divino, um impulso ou um ato de vontade, uma emoção ou uma arte. Talvez haja também uma outra razão pela qual o amor seja tão difícil de definir — e exista uma variedade tão ampla de opiniões sobre ele — é porque a palavra “amor” é empregada de maneira mais despreocupada cotidianamente. Os sentimentos e atitudes implícitos na declaração “Eu amo comida chinesa” têm pouco em comum com aqueles implícitos na expressão “Nós amamos nossa filha”. Portanto, a  palavra “amor” é frequentemente utilizada em contextos em que “gostar”, “favorecer” ou “preferir” seriam realmente mais apropriados. Além disso, há o problema das fronteiras desse sentimento: de onde estados como afeição, proximidade e carinho terminam, e o amor começa.

Seria possível elaborar uma definição de amor que pudesse abarcar todos as suas cores e contornos, as suas manifestações e modos? A reflexão que se segue é baseada na compreensão de que o amor é um interesse ativo, um cuidado, uma empatia e um desejo por intimidade com o outro ou outros, habitualmente acompanhado por um sentimento positivo. Essa definição tenta incluir todas as reconhecidas e concordantes derivações de amor e a maior parte dos estados mentais habitualmente assim conotados. Ela se baseia numa compreensão da filosofia e psicologia buddhistas, mas também é completada pela minha experiência como conselheiro e familiaridade com estudos contemporâneos sobre o amor. Consideremos um pouco mais profundamente essas cinco características que juntas constituem o amor.

Estar interessado em alguma coisa significa ter a atenção engajada por ela e querer conhecê-la melhor. Quando duas pessoas se apaixonam pela primeira vez, elas passam muito tempo se conhecendo, explorando umas às outras emocional e fisicamente. A princípio, o interesse delas é tanto curiosidade quanto qualquer outra coisa. Mais tarde, conhecendo melhor seus amados, seus hábitos, gostos e desgostos e depois levando-os em conta, esse interesse lhes permite agradar seu amado e assim fortalecer os crescentes laços entre eles. Casais que foram casados e felizes por anos dizem, provavelmente com sinceridade, que muitas vezes sabem o que seus parceiros irão dizer antes mesmo de dizer. Durante os anos que passaram juntos, eles se conheceram de maneiras que nem mesmo conhecidos íntimos poderiam.

Um médico profundamente preocupado com seus pacientes tentará saber tudo sobre eles e sobre a doença que os aflige. Enquanto os jovens amantes estarão constantemente revelando informações sobre si mesmos e solicitando-as à sua amada, o conselheiro genuinamente cuidadoso poderá dizer muito pouco às pessoas que lhe pedirem ajuda. Ele ou ela falará pouco, mas escutará atentamente, mais uma vez, devido ao interesse por seus clientes, na esperança de entendê-los. Aqueles que amam a Deus orarão fervorosamente e estudarão as escrituras cuidadosamente, na esperança de conhecer a vontade de Deus e o que deles se espera. Costuma-se dizer que o amor é cego e isso é certamente verdade naquele tipo que repentinamente brilha e em seguida se consome rapidamente, muitas vezes deixando cinzas de raiva e mágoa. Mas o amor que perdura o faz porque está interessado no objeto amado, e esse interesse engendra o conhecimento e disso surge o entendimento.

O cuidado é tanto uma atitude quanto um comportamento. A pessoa que se importa não está apenas disposta a assumir para si mesma alguma responsabilidade em relação àqueles com quem se importa, mas está feliz em fazê-lo. O cuidado é o oposto de ser “descuidado” ou “indiferente”, o primeiro implicando a indiferença e o segundo, a insensibilidade; cada um deles a antítese do amor. Como uma atitude, cuidar genuinamente dos outros pode assumir a forma de atender às suas necessidades, ajudando-os de várias maneiras, orientando-os ou dando-lhes conselhos. Pode até implicar colocar restrições sobre eles, embora isso não seja feito por um desejo de dominar ou controlar, mas para proteger o ente querido até que ele possa se tornar responsável ​​por si mesmo.

O Buddha manifestou todos os sinais de ser um professor atencioso. Ele estava profundamente preocupado com que aqueles que estivessem sob sua tutela crescessem espiritualmente. Uma vez ele aconselhou seus monges mais velhos a não repreenderem os noviços por cada erro. Ele disse que isso poderia desanimá-los, fazê-los perder “até mesmo a pouca fé e o pouco amor” que tinham, e depois partirem. Ele colocou da seguinte maneira: “Se um homem tivesse apenas um olho, seus amigos e familiares, parentes e amigos, tomariam muito cuidado com o seu olho bom, pensando: ‘Que ele não perca esse olho também’. [5] Ele estava pedindo aos mais velhos que cuidassem de seus jovens por preocupação com o bem-estar espiritual deles. Quando o monge Channa confessou a Sāriputta que sua doença prolongada e dolorosa estava levando-o a considerar seriamente o suicídio, Sāriputta disse: “Não se mate, Channa. Viva. Eu quero que você viva. Se você não tem comida ou remédio adequado, eu os trago para você. Se você não tiver cuidados adequados, eu cuidarei de você. Não se mate. Viva. Eu quero que você viva” [6].

Novamente, essas eram as palavras de alguém que se importava profundamente com os outros e queria que eles florescessem. A generosidade e o serviço às vezes são motivados por um senso de dever ou obrigação religiosa, mas fluem naturalmente do coração amoroso. Temos prazer em compartilhar o que temos com nossos entes queridos e somos rápidos em responder quando eles precisam. Nós nunca vemos isso como um dever, uma obrigação ou um fardo. Comportamento carinhoso é amor transmutado em dar, compartilhar e ajudar

A terceira característica que define o amor, a empatia, é aquela habilidade humana especial de sair de si mesmo e entrar nos pensamentos e sentimentos de outros. No buddhismo esta qualidade é chamada dayā ou anuddayā. Enquanto o interesse por alguém nos oferece um conhecimento “mental” prévio dele, a empatia no oferece um conhecimento “amoroso”: nós chegamos a conhecê-lo e portanto conectamo-nos, por dentro, por assim dizer. O Buddha se referiu a sermos empáticos quando ele aconselhou “coloque-se no lugar do outro” [7] e quando ele nos pediu para pensar: “Assim como sou são os outros, assim como os outros são, eu sou” [8]. Ser empático requer uma sensibilidade em relação aos outros e, talvez paradoxalmente, até mesmo um certo desapego de nós mesmos. Dependendo do nível em que estamos envolvidos em nossos próprios sentimentos, preocupações e perspectivas, podemos estar menos disponíveis para perceber os dos outros e portanto provavelmente menos capazes de empatizar com eles.

A intimidade é uma proximidade física e/ou psicológica de alguém ou alguma coisa. A primeira coisa que vem à mente em relação ao amor e à intimidade é o sexo e, de fato, a intimidade sexual é uma componente importante de alguns tipos de amor. Mas a intimidade física também pode se manifestar noutros tipos de amor e de outras formas. Quando vemos uma criança, mesmo que não seja a nossa, podemos ter um forte desejo de a afagar ou de a abraçar. Um aperto de mão caloroso e um sorriso deixam um estranho saber que ele ou ela é aceito e bem-vindo. Quando vemos alguém inconsolável ou amedrontado, podemos ser motivados a segurar a sua mão ou colocar um braço consolador sobre o seu ombro. Quando conhecemos bem este alguém, podemos até dar-lhe um abraço amigável ou um beijo. Intimidade física com animais também não é algo desconhecido. Um amigo meu é excessivamente apaixonado por seu cachorro e o deixa lamber seu rosto. Eu também tenho visto ele muitas vezes cochilando no sofá com seu cachorro aconchegado no peito. A proximidade física e o toque podem expressar e enfatizar o amor. Uma cabeça no ombro, o braço em volta da cintura e andar de mãos dadas são expressões comuns de intimidade amorosa.

É possível ser emocionalmente íntimo também. O Buddha disse que uma das características de uma amizade amorosa era a auto-revelação mútua, o compartilhamento de segredos [9]. Sentimo-nos privilegiados e confiáveis quando nossos entes queridos nos dizem coisas que nunca disseram a mais ninguém. Da mesma forma, gostamos de nos abrir com aqueles que amamos. É uma outra maneira de dizer que são especiais o suficiente para que os convidemos ao nosso ser mais íntimo. Outra forma de intimidade emocional é expressar livremente nossos sentimentos mais profundos com aqueles que amamos. Sentimos que podemos chorar na frente deles, às vezes chorar com eles, ou contar-lhes nossos medos e desejos. Compartilhar objetos que são normalmente reservados para uso pessoal também é um tipo de intimidade.

Foi mencionado acima que a empatia e um desejo por intimidade com o outro ou para com os outros estão entre as características definidoras do amor. Sendo assim, não é possível, na verdade, amar objetos inanimados. Não importa o quão intenso o desejo por intimidade seja, ele não pode ocorrer com algo que não tenha vida interior. Nós podemos estar profundamente interessados em nosso país, estudar sua história, sua geografia, flora e fauna, de modo que o conheçamos minuciosamente, mas não poderemos conhecer qualquer dimensão dele além da física, pois ele não tem uma. De novo, não importa o quanto possamos “amar” hambúrgueres, cigarros cubanos ou suéteres de cashmere, nós não podemos ter empatia com eles, nós não podemos ser íntimos com eles e eles não têm meios de fazer isso conosco. Embora reciprocidade não seja requerida para o amor estar presente, responder positivamente ao amor de alguém normalmente extrai mais amor de nós, intensificando nosso amor por eles e o deles por nós. Coisas não vivas não podem retornar qualquer interesse ou afeto que nós possamos ter por elas.

E sobre as plantas? Podemos dizer que amamos a velha árvore majestosa no parque local ou as rosas erguendo-se ao longo da cerca do jardim, mas podemos realmente “amá-las” do modo que amamos nossa avó ou o gato da família? O Buddha descreveu as plantas como formas de vida dotadas de uma faculdade (ekindriya), embora não tenha especificado qual faculdade elas possuem. Margaridas seguem o sol em seu movimento no céu e mimosas fecham suas folhas quando tocadas, mas, dado nosso melhor conhecimento atual, plantas não têm sentimentos ou emoções no sentido em que humanos e outros animais têm. De acordo com a definição dada acima, ser amável, dar amor e recebê-lo são privilégios de seres vivos. Amar é viver.

Se amamos Deus ou nosso parceiro, os vizinhos ou o cachorro da família, se estamos recebendo ou concedendo, o amor muitas vezes nos faz nos sentirmos muito bem. De maneiras que nem sempre são fáceis de explicar, o amor parece enriquecer nossas vidas, fazendo ela valer a pena apesar de todas as complicações. Psicólogos nos dizem que aqueles que foram privados de amor no início da infância frequentemente carecem de habilidade de se relacionar com sucesso quando são adultos. Tanto dar quanto receber amor parecem ser fatores essenciais no crescimento de um ser humano equilibrado e feliz. Para muitas pessoas, apaixonar-se lhes dará os sentimentos mais arrebatadores que já experimentaram. Casamentos bem-sucedidos e amizades próximas tornam as pessoas envolvidas mais felizes; elas vivem mais. Em pesquisa após pesquisa, as pessoas relatam que sua maior alegria na vida são seus filhos. Para muitas pessoas, suas memórias mais queridas e preciosas não são de aquisição de sucesso mundano ou de ganhos materiais, mas os momentos especiais que compartilharam com seus entes queridos e amigos.

Outras formas de ser amável transmitem felicidade também. Se somos amigáveis, bondosos e solícitos com os outros eles normalmente respondem da mesma maneira, e isso eleva o nível geral de bem-estar em todos os envolvidos. Fazer um favor a alguém e receber um agradecimento nos faz sentir prazeirosamente energizados. Compartilhar coisas com alguém e ver essa pessoa expressar seu contentamento conosco também pode melhorar nosso humor consideravelmente. Isso não significa que se somos bons, gentis e amáveis nós nunca nos sentiremos para baixo. Relacionamentos românticos podem ser emocionalmente tumultuados, e mesmo bons casamentos tem seus “altos e baixos”, e um ato de generosidade pode ser recusado de maneira rude, nos deixando magoados e indignados. Mas é uma generalização segura dizer que aqueles com muito amor experimentam muita felicidade.

Uma vez eu achei uma bolsinha no caminho. Eu a peguei, olhei dentro e descobri que ela continha documentos, algumas chaves e grande quantia em dinheiro. Eu não estava nem um pouco tentado a ficar com o dinheiro, mas ter que ir até a delegacia para entregar a bolsa seria uma inconveniência considerável. Eu continuei no meu caminho, vendo os documentos para ver se achava um nome ou número de telefone, o qual achei. Percebi que tinha um telefone de rua ali na frente e decidi ligar para o número que havia encontrado. Eu achei a mulher com o nome em um dos documentos e o seu alívio ao escutar que sua bolsa fora encontrada foi muito óbvio. Eu disse que eu a aguardaria enquanto ela se dirigia até a cabine telefônica para me encontrar. Quando ela chegou, ela estava cheia de gratidão. Ela me falou sobre todos os problemas que teria de enfrentar se ela tivesse perdido seus documentos e as chaves, e que o dinheiro era essencial para alguma necessidade premente. Nós conversamos por um pouco e antes de partir, ela pegou minhas mãos e disse com profundo sentimento: “Obrigada! Obrigada! Muito obrigada!” Eu me senti muito feliz e mesmo ao escrever isto quase 20 anos depois, eu ainda sinto um leve entusiasmo ao me lembrar.

Por que é que fazer o bem para os outros, ser gentil e atencioso com eles, geralmente nos faz feliz? No incidente relatado acima, reconheço que a efusiva gratidão da mulher provavelmente elevou minha auto-imagem, e ter o ego inflado é sempre gratificante. No entanto, isso não pode ser toda a história. Às vezes, ajudamos os outros anonimamente ou não recebemos o agradecimento pelo bem que fizemos, e ainda assim nos sentimos bem.

Parece que a combinação de duas coisas criam felicidade quando somos gentis com os outros – simplesmente por sabermos que tornamos o caminho de outra criatura amiga mais fácil ao longo da vida, ainda que somente um pouco, e a habilidade em sermos felizes com a felicidade dos outros, um estado mental que o Buddha chamou de alegria apreciativa (muditā). O Buddha reconheceu esse fenômeno embora não o tenha explicado. “Alguém alegra-se aqui, alegra-se ali, alegra-se aqui e ali. Alguém alegra-se lembrando das boas ações que praticou” [10].

Líderes religiosos, filósofos e moralistas vivem nos exortando a tratar uns aos outros com gentileza, nos garantindo que esse comportamento levará à nossa felicidade, mas suspeito que ninguém está dando ouvidos a eles. Quando você se oferece para ajudar alguém, duvido que a sua motivação seja “Ah, que maravilha! Mais uma chance de eu ser feliz!” Parece que em geral as pessoas já nascem sabendo que a gentileza e a boa vontade levam à felicidade.

No entanto, ser amoroso nem sempre caminha junto com sentimentos positivos. É possível fazer o bem a outros com intenções generosas enquanto se mantém neutro emocionalmente. Uma enfermeira pode cuidar de seus pacientes com carinho e dedicação enquanto sua atitude é profissional e emocionalmente desapegada. De vez em quando ela pode sentir felicidade e prazer quando considera que é uma boa enfermeira ou quando alguém manifesta sua gratidão a ela. Mas esses sentimentos não precisam estar lá todas as vezes que ela cuida de seus pacientes. Um cônjuge ou um pai pode ter o amor mais profundo por seu parceiro ou por seus filhos enquanto, às vezes, é tirado do sério, incomodado ou entendiado por eles, mesmo quando os ajuda, sacrifica-se por eles ou os encoraja. O perdão é amplamente considerado como um ato que nasce do amor. No entanto, quando resolvemos perdoar alguém ou quando alguém pede nosso perdão e o concedemos, ainda podemos sentir ressentimento ou raiva por essa pessoa. De fato, o perdão é geralmente considerado como tendo ocorrido apenas quando é dado apesar dos sentimentos de mágoa. Notamos mais o nosso amor quando ele surge junto com sentimentos positivos, mas esses não precisam andar juntos. O amor não é um sentimento, embora muitas vezes forme um conjunto com um forte sentimento positivo. O amor é uma atitude, um comportamento e um modo de se relacionar com os outros. É somente quando os sentimentos são confundidos com amor ou são vistos como seu núcleo, que nossos relacionamentos se tornam complicados devido a ciúme, apego e dependência. Nós, humanos, temos uma forte propensão a nos apegarmos a sentimentos

Já foi dito acima que o amor é a interação de interesse e cuidado, empatia e desejo por intimidade que juntos criam uma conexão entre os seres vivos e é frequentemente associado a sentimentos positivos. Também foi dito que todos esses componentes têm que ser ativamente expressos para se qualificar como amor. Em outras palavras, o amor não é uma ideia, não mais do que algo que sentimos e depois nos sentamos e desfrutamos. Implica alguma forma de engajamento físico, ser colocado em movimento, ser “movido”. As escrituras buddhistas comentam que o coração de uma mãe treme como folhas flutuando na brisa quando ela vê seu filho depois de uma longa ausência [11]. Mas este não é o movimento que está implicado aqui. Significa que, quando amamos verdadeiramente alguém, interagimos física e psicologicamente com elas, a ponto de influenciarmos sua vida. Isso ressalta o que o Buddha estava se referindo quando falou de “atos de amor do corpo” [12]. A Bíblia também enfatiza que o amor tem que fluir do coração para mover as mãos. “Se alguém tem posses materiais e vê seu irmão em necessidade, mas não tem pena dele, como pode o amor de Deus estar nele? Queridos filhos, não amemos com palavras ou língua, mas com ações e com a verdade” [13]. O amor é tanto um comportamento quanto uma atitude.

As pessoas frequentemente falam sobre o que chamam de “amor incondicional”. Se pudermos evitar o calor que sentimos quando ouvimos esse termo nos impedindo de pensar com cuidado e clareza, talvez tenhamos que reconsiderar a realidade do chamado amor incondicional. Pessoas me dizem que seus parceiros as amam “incondicionalmente”, mas dois ou três anos depois eu ouço que o seu relacionamento está tendo problemas ou até mesmo que se separaram. Algumas condições, algumas mudanças nas circunstâncias, devem ter alterado o amor que sentiam um pelo outro. Recentemente li um artigo numa revista com o título “Amor incondicional de uma mãe por seu filho”. Ele fala da luta de uma mulher para cuidar de sua filha gravemente doente e dos muitos sacrifícios que ela fez ao fazer isso. Foi uma história emocionante e comovente. Mas enquanto essa mãe permaneceu devotada à filha, apesar dos enormes desafios, seu amor parece que tinha suas condições. Há pouca dúvida de que ela fez tudo o que fez porque a criança era dela, ou seja, que seu amor e devoção eram despertados por seus instintos maternais. É improvável que ela teria feito sacrifícios semelhantes pelo filho de um completo estranho. Em um lugar no artigo, a mulher disse: “Eu nunca poderia ter feito isso sem o apoio do meu marido”, novamente indicando que o que ela fez foi possível em parte pela ajuda que ela recebeu de outra pessoa.

Isso não é para negar a tremenda coragem da mulher, a devoção, o auto-sacrifício, mas apenas para mostrar que o seu amor, tal como todos os estados, foi influenciado por vários fatores. Pode parecer que até mesmo o amor divino, o amor por Deus, qualquer Deus, tem as suas condicionantes. É-nos dito que Deus nos perdoará os pecados somente na condição de acreditarmos nele, de nos arrependermos genuinamente e tentarmos nos modificar. Se morrermos sem preencher esses requisitos, o veredicto de Deus é que ele nos abandonará num destino doloroso por muito tempo. Mesmo que tudo isso seja o resultado das nossas próprias escolhas, isso ainda faz com que o amor de Deus seja diferente do que seria de outro modo [14].

O Buddha disse que tudo no universo existia devido à conjugação de uma complexa rede de causas e condições, e amor não era uma exceção a isso. O tipo de amor que somos capazes, sua força e sustentabilidade, é condicionado por vários fatores psicológicos como nossa constituição emocional, nossa vontade, nossas crenças e assim por diante. Ele também pode ser condicionado por fatores externos, como nossas normas sociais, as pessoas com quem entramos em contato e a natureza das relações que temos com elas. No entanto, aceitar que nossa capacidade de amar e o amor que expressamos está condicionado não o desmerece, mas somente nos faz olhar mais claramente. Se elevamos o amor, ou mesmo qualquer coisa, para fora da realidade, isso nos impedirá de compreendê-lo totalmente.

Sou capaz de ler as escrituras agora às 10 horas da noite porque tenho luz. Eu tenho luz porque a lâmpada está funcionando e paguei a conta de energia do mês passado. A minha capacidade de ler as escrituras diminuiu de alguma forma simplesmente porque depende de certas condições? De repente, torna-se impossível aprender ou ser inspirado pelas palavras do Buddha porque lê-las é possível graças à lâmpada? Se amanhã eu for caridoso com alguém como resultado do que li, esse ato torna-se inconsequente só porque paguei a conta de energia? Eu penso que não. O amor não é roubado de sua bondade e de sua majestade porque é condicionado.

Enquanto o amor é condicionado, também é verdade que alguns amores são mais condicionados do que outros, ou que são condicionados por diferentes fatores. Quanto menos condições o amor requerer para despertar, crescer e se expressar, tanto menos condições o frustrarem e conterem, mais exaltado será. O amor romântico requer sexo ou a promessa de sexo para se manter vivo, e normalmente se apaga se algum desses não estiver presente. O amor conjugal pode ser desgastado por uma longa separação e raramente sobrevive à traição mesmo que não termine em divórcio. Do mesmo modo, uma amizade amorosa precisa ser continuamente nutrida por confiança, lealdade, compartilhamento de interesses e assim por diante. Exceto talvez pelo amor espiritual elevado, a maioria dos outros tipos precisa ter reciprocidade. O que nós realmente queremos dizer com amor incondicional é um amor ofertado facilmente, que persiste apesar dos obstáculos, que possui poucas expectativas, e que faz poucas demandas.

Notas

[1] Corinthians 1, 13.

[2] Isso pareceria reduzir a intensidade de sentimento que é normalmente associada com o amor compassivo e romântico e assemelha-se ao que nós poderíamos chamar afeição ou bondade. O erudito buddhista indiano, Buddhaghosa, do quinto século, foi bem específico quando escreveu: “O amor é caracterizado como promovendo o bem-estar dos outros e sua função é focar no seu bem-estar. Ele se manifesta como a remoção da irritação e sua causa próxima é perceber a natureza amável dos seres. Ele triunfa quando faz com que a má vontade regrida e ele fracassa quando dá origem ao apego”. Vism. 318

[3] A Road Less Traveled, 1997, p.69.

[4] Love and Loss, 2009, p.2.

[5] M.I,444.

[6] M.III,264.

[7] attānaṃ upamaṃ katvā, Dhp.129; Sn.705.

[8] yathā ahaṃ tathā ete, yathā ete tathā ahaṃ, Sn.705.

[9] D.III,187.

[10] Dhp.16.

[11] Ja.V,328.

[12] mettena kāyakammena, D.II,144.

[13] 1 John 3,17-18.

[14] Veja o interessante comentário de Simon May a respeito deste tema em seu “Love: A History”, pgs.106-118.


Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
em acordo com o autor
Para Distribuição Gratuita
© 2015-2019 Edições Nalanda

Nota: Este artigo é parte da série Reflexões Buddhistas Sobre o Amor que está sendo traduzida e cujas partes serão publicadas aqui no site.


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