~Ven. Nyanaponika Thera ~
O Buddha declara que ele ensina o Dhamma pelo simples propósito de guiar os seres em direção à libertação do sofrimento. Se, movidos pelos ensinamentos, decidimos dar fim ao sofrimento, é de grande importância que entendamos o problema do sofrimento claramente em suas verdadeiras larguras e profundidades. Se nossa compreensão do problema é ofuscantemente incompleta, nosso empenho em eliminá-lo também será incompleto, incapaz de acumular a força necessária para gerar resultados satisfatórios.
Quando nos perguntam: “Por que acabar com o sofrimento?”, a resposta óbvia é a de que esse é um desejo natural e íntimo de querer estar livre de aflição. Contudo, ao aspirar à extinção do sofrimento, devemos pensar não somente em nossa própria aflição, mas também na dor e no pesar que infligimos aos outros (desde que não tenhamos alcançado a perfeita não-ofensividade de um coração livre de paixões e a clara visão de uma mente liberta). Se regularmente nos recordarmos do fato de que, no nosso caminho através da existência no saṁsāra, nós inevitavelmente adicionamos ao sofrimento dos outros também, nós deveríamos então sentir uma urgência ainda maior em nossa determinação de entrar seriamente no caminho que leva à libertação.
O sofrimento que infligimos aos outros seres inclui primeiramente os casos em que os outros seres tornam-se objetos passivos de nossas ações prejudiciais. Nossa ganância rouba, empobrece, priva e deprecia, mancha e viola. Nossa raiva mata e destrói, machuca e provoca medo. As águas barrentas de nossa interferente ignorância inundam e devastam a costa de nossos pacíficos vizinhos. Nossos maus julgamentos os deixam perdidos e em calamidade.
Além disso, há a segunda e ainda mais prejudicial maneira das nossas interferências violadoras causarem mal aos outros. Nossa maldade ou nossos atos impuros geralmente geram nos outros uma resposta prejudicial que os direciona ainda mais para o emaranhado de suas violações. Nossa própria ganância incita ganância competitiva nos outros; nossa própria cobiça provoca desejos luxuriosos que poderiam estar adormecidos nos outros se não os tivéssemos acordado. Nosso próprio ódio e raiva provocam hostilidade em troca, dando início ao interminável ciclo de vingança recíproca. Nossos preconceitos se tornam contagiosos. Pelas nossas próprias ilusões, nós enganamos os outros, que, por acreditarem nelas, acabam fazendo com que cresçam em peso e influência. Nossos maus julgamentos, valores falsos e nossa visão errônea, às vezes expressada apenas casualmente, são assumidos e expandidos pelos outros para sistemas extensos de noções enganosas e distorcidas que geram danos velados à mente das pessoas. Em todos esses casos, boa parte da responsabilidade é nossa. Quanto cuidado temos que ter com o que falamos e escrevemos!
Uma terceira forma de causar o sofrimento aos outros é devido à limitada e volúvel existência de nossas emoções. O amor que sentimos por certa pessoa pode se esvaecer enquanto esta pessoa ainda nos ama, fazendo-a sofrer pela nossa rejeição. Ou, de maneira inversa, enquanto o amor dos outros por nós se esvaece, o nosso amor ainda vive e constantemente deseja o outro, violando assim a necessidade de liberdade do outro, perturbando a sua paz, cortando seu coração e causando dor a ele, pois ele não pode nos ajudar. Essas são situações bastante comuns nos relacionamentos humanos e suas consequências são geralmente trágicas. Nós sentimos fortemente as suas aflições porque nenhuma culpa moral parece estar envolvida, apenas a rígida e impassível lei da impermanência imprimindo seu selo doloroso nas cenas da vida.
Aqui ainda também se aplica um princípio moral, embora seja apenas uma questão de definição se usamos a palavra “culpa”. Entendida corretamente, a situação mostra um caso de cobiça, apego e desejo que causam dor por não estarem sendo satisfeitos. Olhando para esse caso por esse ponto de vista, fica clara a segunda nobre verdade: “O desejo é a origem do sofrimento”. E também fica claro aquele aparente paradoxo: “Do que nos é caro, o sofrimento surge”. Quando contemplamos profundamente esse pequeno exemplar de sofrimento da vida como foi apresentado aqui, nós, de fato, sentimos: “Verdadeiramente, isso, sozinho, é suficiente para fazermos nos distanciar de todas as formas de existência, nos tornarmos desencantados delas, nos tornarmos desapegados delas!”
Nós ainda não esgotamos todas as formas pelas quais as nossas imperfeições podem sugar os outros para os nossos redemoinhos de sofrimento. Mas já pode ser suficiente adicionarmos um quarto e último ponto. Nossas próprias paixões e nossa ignorância, seja envolvendo o outro diretamente ou apenas um observador, podem contribuir para prejudicá-lo destruindo a sua confiança no homem, suas crenças em ideais supremos e na sua vontade de contribuir para apoiar a bondade no mundo. Nossas próprias imperfeições podem desta maneira induzi-lo a se tornar egocêntrico (dada a sua decepção), um cínico ou um misantropo (dado seu ressentimento pessoal ou impessoal). Levados pelas nossas imperfeições, as forças do bem irão novamente ficar enfraquecidas não somente em nós, mas nos outros também.
Existem muitos que irão responder à doutrina buddhista do sofrimento dizendo: “Nós estamos bastante cientes de que felicidade e beleza, alegria e prazer, têm que ser pagos com certa quantia de sofrimento. Mas estamos dispostos a pagar o preço sem nos queixarmos, mesmo com o último preço, a morte; e nós achamos que vale a pena e que agrega entusiasmo à nossa alegria”. Perante essas pessoas que falam assim, nós podemos colocar os fatos indicados acima e perguntar a eles: “Você está ciente de que o preço ao qual você se refere é pago não apenas com seu próprio sofrimento, mas também com o sofrimento dos outros? Você acha que é correto e justo você fazer os outros pagarem pela sua felicidade? Você ainda acharia “entusiasmante” se você olhar para a sua felicidade deste ponto de vista? E nosso parceiro – desde que ele seja honesto e nobre de pensamento (e somente com alguém com essas qualidades valeria a pena ter essa conversa) – irá dizer de forma pensativa: “Eu não tinha pensado isso dessa maneira. É verdade, eu não posso fazer os outros pagarem pelas minhas falhas. Se eu considero injusto e desonroso fazer isso no meu dia-a-dia, também não o seria em relação a problemas maiores da vida?” Nós, então, podemos estar seguros de que plantamos a semente na sua mente e consciência e que ela irá germinar no momento devido.
Retornamos agora à nossa linha de pensamento inicial. Nós vimos como as nossas ações afetam os outros por diferentes canais, como nossas falhas podem levar os outros ao sofrimento, confusão [1] e culpa. Deste modo, nossa constantemente acumuladora responsabilidade por muito do sofrimento e infelicidade no mundo deveria ser um adicional e poderoso incentivo para nos tornarmos santos e íntegros, também pelo bem dos outros.
Certamente nossa integridade e saúde não irão curar os outros, ao menos não diretamente e não em todos os casos. Nossa inofensividade irá apenas, e raramente, evitar que os outros façam algo prejudicial. Mas nos direcionando em direção à saúde espiritual, nós iremos diminuir, ao menos em uma, as fontes de infecção no mundo, e a nossa própria inofensividade irá fazer diminuir o combustível que alimenta o fogo do ódio que assola essa terra.
Mantendo-nos conscientes do sofrimento que causamos e do sofrimento que podemos impedir, nós adicionamos dois poderosos motivos para aqueles que já se mostram desejosos por entrar no caminho da libertação: o senso desafiador da responsabilidade do homem e a completude do amor materno e compaixão. Esses ideais complementares de dever e amor, que iremos chamar de princípio macho e fêmea, irão nos ajudar a nos manter no caminho de forma inabalável. Amor e compaixão para com aqueles que poderão ser a vítima de nossas imperfeições irão nos encorajar para que façamos o nosso trabalho para com eles através do único caminho possível: fazer o nosso dever com nós mesmos.
As linhas de pensamento acima são sucintamente expressadas por um dizer do Buddha que é pouco conhecido:
“É protegendo a nós mesmos, que protegemos os outros;
É protegendo os outros, que protegemos a nós mesmos” – SN 47:19
À luz das observações acima, essas simples, porém profundas palavras do mestre irão se tornar ainda mais claras, carregadas de um poder mágico que remexem as profundidades do nosso ser. Pensando em como nossas ações violadoras podem ter efeitos prejudiciais aos outros, nós podemos entender melhor que ambas as declarações nessa passagem são complementares: ao nos policiarmos, estaremos fazendo o nosso melhor para proteger os outros; no desejo de proteger o outro em relação ao sofrimento que podemos causar a ele, estaremos fazendo o possível para proteger a nós mesmos.
Então, pelo nosso bem e pelo bem de todos os nossos amigos seres, nós temos que ser atenciosos em cada passo que damos. Somente com um alto grau de vigilância iremos obter sucesso. Ainda é dito no mesmo ensinamento, que o método de praticar essa proteção dupla é o firme estabelecimento da vigilância (satipaṭṭhana), que aqui prova também que é o “único caminho” (ekayanno maggo):
“Eu devo proteger a mim mesmo”, desta maneira o estabelecimento da vigilância tem que ser cultivado.
“Eu devo proteger os outros”, desta maneira o estabelecimento da vigilância tem que ser cultivado.
A mesma ideia e método são expressos em uma passagem do “Conselho do Buddha a Rahula” (MN 61):
“Após refletir repetidas vezes, ações por ato, palavras ou pensamento devem ser realizadas… Antes de fazer essas ações por ato, palavras ou pensamentos, enquanto as fizer e após essas realizações, deve-se refletir deste modo: ‘Essa ação prejudica a mim mesmo, prejudica alguém, ou prejudica ambos?’ Após refletir repetidas vezes, deve-se purificar as ações pelo ato, palavra ou pensamento. Desta maneira, ó Rahula, você deve treinar a si mesmo”.
Ainda é dito:
“Desta maneira, ó monges, vocês devem treinar a si mesmos:
Considerando o seu próprio bem-estar, isso é suficiente para esforçar-se sem cansar.
Considerando o bem-estar dos outros, isso é suficiente para esforçar-se sem cansar.
Considerando o bem-estar de ambos, isso é suficiente para esforçar-se sem cansar”.
SN 12:22
Esses três dizeres do mestre iluminam um ao outro. Lembrando-nos dos motivos corretos de nossa busca; e oferecendo a nós os métodos corretos para realizar a nossa tarefa, eles serão guias infalíveis para trilhar o caminho.
(retirado de “Uma Visão do Dhamma”, Buddhist Publication Society,
PO Box 61, Kandy, Sri Lanka)
[1] Na versão em inglês: entanglement, que ao “pé da letra” quer dizer emaranhado ou entrelaçamento.
Traduzido por Oscar Simões
para o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda
© da tradução, 2013 Edições Nalanda
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