gil fronsdal~ por Gil Fronsdal ~
Como um comerciante transportando grande riqueza
Em uma pequena caravana evita uma estrada perigosa.
Como alguém que ama a vida
Evita o veneno.
Assim, você deve evitar más ações.
-Dhammapada 123

A prática espiritual buddhista pode ser dividida em três categorias gerais conhecidas em pāli como sīla, samādhi e paññā, que podem ser traduzidas como virtude, meditação e sabedoria, respectivamente. Elas funcionam como três pernas de um tripé; é essencial cultivar todas as três. Sabedoria e meditação não se desenvolverão sem virtude. Desenvolver virtude e compreensão na profundidade total de suas possibilidades requer sabedoria e meditação.

Nenhuma palavra da língua inglesa traduz adequadamente sīla. Às vezes, em sua origem etimológica, é dito que sīla vem da palavra para “cama”. Certamente podemos vê-la como a pedra angular ou a fundação na qual o resto de nossa prática espiritual é construída. Cedo ou tarde, qualquer um que comece a desenvolver alguma sensibilidade por meio da prática de vigilância irá descobrir que sem a fundação da virtude, é difícil desenvolver uma maior profundidade na sensibilidade.

Sīla é geralmente traduzida como “virtude” ou “ética”, mas é preciso ter cuidado para não confundi-la com as ideias ocidentais de virtude e ética. Uma fundação tradicional da ética ocidental é baseada em mandamentos e valores muitas vezes transmitidos por um deus. Esses valores incluem ideias sobre certo e errado, bem e mal e regras absolutas sob as quais temos de viver.

Essa abordagem da ética leva facilmente à culpa, uma emoção que é muito difundida no Ocidente, mas que é considerada desnecessária e contraproducente no Buddhismo. O Buddhismo entende virtude e ética de forma pragmática, com base não em pensamentos de bom e mau, mas sim na observação de que algumas ações levam ao sofrimento e algumas ações levam à felicidade e à liberdade. Um buddhista pergunta: “Será que esta ação conduz ao aumento do sofrimento ou ao aumento da felicidade, para mim e para os outros?” Essa abordagem pragmática é mais favorável à investigação do que à culpa.

Como referências para virtude e comportamento ético, o Buddha formulou preceitos para que seguíssemos. Para os laicos há cinco referências básicas. São elas: 1) abster-se de matar, 2) abster-se de roubar, 3) abster-se de má conduta sexual, 4) abster-se de mentir, e 5) abster-se de intoxicantes como drogas ou álcool.

O Buddha se referiu a essas cinco de formas diferentes, dando-nos perspectivas diferentes para que compreendêssemos. Às vezes, ele as chamou de as “cinco regras de treinamento” (pancasikkha), por vezes, “cinco virtudes” (pancasīla), e às vezes simplesmente como “as cinco coisas” ou as “cinco verdades” (pancadhamma). A expressão “as cinco coisas” pode parecer estranha, mas talvez isso ajude a nos libertar de ideias fixas sobre o que essas “coisas” são, e como elas funcionam.

Há três maneiras de compreender essas “cinco coisas”. A primeira é como regras de comportamento. Elas não são consideradas mandamentos; antes, o Buddha as chamou de “regras de treinamento”. Nós, voluntariamente, assumimos os preceitos de treinamento como uma disciplina para o apoio da nossa formação espiritual. Na sequência, eles promovem o desenvolvimento da meditação, sabedoria e compaixão.

Enquanto regras de treinamento, os preceitos são entendidos como regras de contenção. Eles são expressos assim: “Devido ao meu treinamento, faço o voto de não matar, não roubar” e assim por diante. Concordamos em nos conter em relação a certos impulsos. Ao invés de seguir nossa inclinação de matar um pernilongo ou roubar canetas no trabalho, nos contemos e tentamos trazer a observação vigilante em relação ao desconforto ao qual impulsivamente reagimos. Ao invés de focar em se as ações são ruins ou imorais, usamos essas restrições como espelhos para estudarmos a nós mesmos, para entendermos nossas reações e motivações e refletir sobre as consequências de nossas ações.

Seguir as regras de treinamento oferece-nos uma forma de proteção muito poderosa. Em primeiro lugar, os preceitos protegem-nos de nós mesmos, do sofrimento que causamos aos outros e a nós próprios quando agimos sem pensar.

A segunda forma como o Buddha falou dos preceitos foi como princípios de virtude. Os princípios fundamentais que sustentam os preceitos são a compaixão, o não causar o mal e a generosidade. Seguimos os preceitos por compaixão, porque sentimos o sofrimento dos outros e pela possibilidade de libertar os outros do sofrimento. Também vivemos de acordo com os preceitos por compaixão a nós mesmos. Queremos ser cuidadosos em relação às nossas ações intencionais, o modo como agimos, a maneira como falamos, até mesmo os tipos de pensamentos que entretemos.

Assim, os preceitos não se tornam um ideal rígido que seguimos, mas os praticamos juntamente com o princípio de não causar dano. Podemos manter sob controle qualquer tendência de criar danos por meio de uma mente estreita ou de usar os preceitos de forma insensível, perguntando-nos: “Essa ação causa dano a mim ou aos outros?” A humanidade se aproxima dos preceitos por meio da compreensão do que causa o mal.

Viver pelos preceitos é, em si mesmo, um ato de generosidade; damos um maravilhoso presente de proteção para nós mesmos e para outros. De fato, uma razão pragmática em se seguir os preceitos como regras restritivas é trazer alegria a nossas vidas. Muitas pessoas meditam por acharem que carecem de felicidade e contentamento. De acordo com o Buddha, uma das melhores formas de cultivar e apreciar o contentamento é viver uma vida virtuosa.

A terceira forma que o Buddha fala dos preceitos é como qualidades de caráter de uma pessoa. O Buddha descreveu uma pessoa espiritualmente bem desenvolvida como dotada de cinco virtudes. O Buddha disse que, uma vez atingido certo nível de iluminação, é simplesmente impossível quebrar os preceitos. Seguir os preceitos é um subproduto de se ter descoberto a liberdade.

Em resumo, essas cinco coisas podem ser entendidas como regras de treinamento, como princípios que guiam as nossas ações e como uma descrição de como age uma pessoa desperta. O mundo precisa de mais pessoas com intenção, sensibilidade e pureza de coração representadas pelos cinco preceitos.

Possam os cinco preceitos ser uma fonte de alegria para cada um.

 


Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
revisão: Ricardo Sasaki
em acordo com o Autor

© 2014 Gil Fronsdal

Nota: “Tocar o Coração do Assunto” é uma compilação de ensaios editados sobre a prática buddhista da observação vigilante. Muitos destes capítulos começaram como palestras dadas aos grupos de meditação da noite de segunda-feira ou da manhã de domingo do Insight Meditation Center em Redwood City, Califórnia. Alguns dos capítulos foram escritos especificamente para a publicação em jornais, em revistas ou em boletins de notícias buddhistas. Este livro é uma oferenda do Dhamma.


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