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Em Reconhecimento
As Três Características é uma parte do livro chamado Buddhadhamma, sendo seu terceiro capítulo. Buddhadhamma começou a ser traduzido a mais de 15 anos atrás. Mesmo a tradução tendo sido concluída cerca de sete anos mais tarde, apenas os capítulos 4, 5, e uma parte do capítulo 21 foram publicados. O atraso da publicação foi devido à falta de tempo do autor para examinar a tradução: Não houve nova publicação desde 1994.
Essa tradução de As Três Características por Suriyo Bhikkhu, o abade do Hartridge Monastery, Devon, Reino Unido, é um avanço. Foi feita não só com grande esforço, mas também com grande devoção. Num esforço pela precisão literal, ele levou muito tempo para terminá-la tendo, inclusive, o trabalho sido lido por vários eruditos conhecedores tanto do Dhamma quanto do idioma inglês. Esse processo tornou o autor confiante na tradução.
Que todos os envolvidos na realização deste livro alcancem a paz e a felicidade. Que essa ação meritória fomente o bem-estar no mundo.
Phra Brahmagunabhorn (P. A. Payutto)
21 de dezembro de 2006 (2549 B.E.)
Prefácio
Conheci Tahn Chao Khun Payutto* em 1994 quando veio para ensinar aos monges em Wat Pah Nanachat** para uma série de palestras. Sua reputação chegara antes dele: Eu sabia que ele tinha lecionado em minha alma mater, Swarthmore College, na Pensilvânia e que com a morte de Buddhadasa Bhikkhu ele se tornou reverenciado por muitos como o mais importante monge erudito da Thailândia. Tendo sido instruído na austera tradição da floresta, confesso que ainda olhava para “monges estudiosos” com ceticismo. O título de sua primeira palestra – Felicidade – despertou meu interesse, e durante a hora seguinte fui profundamente inspirado por sua apresentação lúcida. Mais importante, fiquei comovido ao reconhecer que ele não falava apenas a partir de conhecimento livresco, mas também a partir da experiência – ele irradiava felicidade. Sete anos depois eu pedi permissão para viver em seu monastério em Nakhon Pathom, perto de Bangkok. Ele me avaliou e perguntou como eu iria empregar meu tempo, ele pareceu satisfeito com a minha resposta de que eu gostaria de continuar lendo o Cânone Pāli. Pouco tempo depois eu perguntei sobre a tradução de Bruce Evans do opus magnum de Thao Chao Khun* – Buddhadhamma, um abrangente livro de referência sobre os ensinamentos do Buddha. O projeto de tradução havia chegado a uma parada, e fui questionado se poderia dar uma olhada naquilo. Logo mergulhei nele.
*Então conhecido como Tahn Chao Khun Dhammapitaka. ‘Tahn Chao Khun’ é um título honorífico.
**O Mosteiro de Floresta Internacional em Ubon Rajathani, Thailândia.
A maior parte dos 22 capítulos de Buddhadhamma pode ser lida de forma independente, embora deva-se perceber que eles estão conectados. Muitos leitores estão familiarizados com as traduções de Bruce Evans dos capítulos 4 e 5, sobre a Originação Dependente e Kamma, respectivamente. A primeira metade de Buddhadhamma, do qual este presente livro (capítulo 3) faz parte, é teórica, explicando os principais ensinamentos buddhistas sobre a natureza da experiência humana e do mundo que nos rodeia. Mas como o leitor verá, o autor honra a teoria relacionando-a com a prática espiritual. Embora eu tenha trabalhado em quatro dos seis primeiros capítulos, eu estava, ao final, empolgado para completar este devido à sua contribuição para o meu próprio entendimento do Buddhismo e porque eu sinto que há ainda muito mal-entendimento entre buddhistas com respeito às Três Características e ainda mais no que concerne ao conceito de dukkha.
Meu maior desafio foi escolher o nível de precisão literal para a tradução. Por um lado, gostaria de honrar a obra original e, por outro lado, algumas ‘simplificações’ no texto, pelo menos em estilo, pareciam necessárias para torná-lo mais acessível aos iniciantes e intermediários nos estudos buddhistas. Meus bondosos editores e revisores tiveram visões opostas sobre o assunto e, no final, eu mantive o compromisso. Muitas pessoas ajudaram nesta tradução, oferecendo críticas construtivas e encorajamento. Em especial desejo mencionar Ajahn Jayasaro, Venerável Cittasamvaro, Max Mackay-James e Ron Lumsden.
Para ajudar o leitor eu adicionei notas de rodapé explicativas: todas são do tradutor. As notas finais são todas parte do texto original. Os números de referência referem-se à Pali Text Society (número da página da edição pāli), salvo indicaçãoem contrário. Osnúmeros entre parêntesis no texto principal referem-se ao número das páginas do original thailandês. O leitor verá que eu reposicionei uma seção (em “Ocultadores”) e que Tahn Chao Khun me forneceu algum material complementar novo.
Como tradutor, sigo na sombra (ou agarrado no manto, se isso fosse permitido) da sabedoria excepcional e grande bondade de Tahn Chao Khun. Meu trabalho foi um condutor das verdades aqui contidas, ainda que eu não as tivesse totalmente incorporado e realizado.
Possa este livro auxiliar buscadores da verdade a rasgar os véus da ignorância e chegar à perfeita paz.
Suriyo Bhikkhu
(Robin Moore)
Hartridge Monastery
May 2007
Introdução
O fundamental princípio buddhista de que todas as coisas podem ser separadas em componentes não se destina a sugerir um estático mundo de objetos compostos. Pelo contrário, todas as coisas são vistas como existindo na forma de um fluxo*. Cada elemento constitutivo do fluxo surge na dependência de outros elementos em um fluir contínuo de surgimento e deterioração. Nenhum elemento a parte tem uma identidade fixa independente; todos eles são impermanentes e instáveis. De fato, a natureza fluida dos fenômenos é possível devido à interdependência e da insubstancialidade de seus componentes.
* Os dois capítulos anteriores de Buddhadhamma discutem a composição dos seres humanos em cinco agregados (de corpo e mente) e as seis bases dos sentidos (olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo e mente), respectivamente. Aqui o autor pretende oferecer um contraste, numa perspectiva menos anatômica. Note a semelhança com as descobertas na física quântica.
Esse fluxo de fenômenos interdependentes é constante (dhammadhatu), infalível (dhammadhiti) e uma parte da ordem natural (dhamma-niyama) [1] [68] Não depende da existência de um deus, religião ou profeta. No Buddhadhamma † o papel de um professor ‡ é o de revelar e explicar essa verdade aos outros.
† Os ensinamentos do Buddha.
‡ Ou seja, o Buddha.
O Buddha expôs o ensinamento das Três Características (tilakkhaṇa) § para descrever essa lei natural do fluxo. [2] O ensinamento é descrito da seguinte forma:
§ Também conhecido como “sinais” ou “marcas”.
Se um (Buddha) * aparece ou não, essas verdades (dhātu) são constantes e estáveis… assim:
Todos os fenômenos condicionados (saṅkhāra) são impermanentes…
Todos os fenômenos condicionados são dukkha **…
Todas as coisas (dhamma) são não-eu…
Tendo tomado consciência e penetrado esta verdade, um Tathāgata
anuncia-a, ensina-a, clarifica-a, formula-a, revela-a, e analisa-a: todos os fenômenos condicionados são impermanentes, todos os fenômenos condicionados são dukkha, e todas as coisas são não-eu. [3]
*Aqui, o termo Tathāgata é usado no lugar de Buddhas.
**A palavra dukkha é notoriamente difícil de traduzir. As traduções mais comuns incluem: sofrimento, insatisfação, estresse, dor e miséria. Muitos equívocos surgiram por traduzir a segunda característica como “tudo é sofrimento ou a vida é sofrimento”. Para os diferentes contextos nos quais o termo dukkha é usado, veja abaixo. Por favor, notem que quando eu uso os termos “estresse” e “sob pressão” refiro-me à pressão e à tensão inerente a todas as coisas.
As definições das Três Características são as seguintes:
1. aniccatā: impermanência, instabilidade e inconstância. A condição do surgir, deteriorar-se e se desintegrar.
2. dukkhatā: Estado de dukkha; a condição de opressão pelo nascimento e decadência, a tensão, o estresse e os conflitos dentro de um objeto devido à alteração dos seus fatores determinantes, impedindo que permaneça como é; a imperfeição interna das coisas, o que impede a verdadeira satisfação daquele cujos desejos são influenciados pelo desejo-sedento (taṇhā), e causa sofrimento para a pessoa que se apega (upādāna).
3. anattatā: A condição de anattā – não-eu, a condição de vazio de um eu real, permanente nas coisas.† [69]
† Note que eu traduzi anattā como ‘não-eu’, ‘ausência-de-eu’ ou ‘desprendimento’, de acordo com o contexto: a palavra attā em pāli (ātman em sânscrito) é mais frequentemente traduzida como ‘ego’ ou ‘alma’, eu usei ambas, também de acordo com o contexto. As palavras ‘desprendido’ e ‘desprendimento’ aqui não devem ser confundidas com o entendimento padrão de ser ‘altruísta’.
Os adjetivos em pāli para essas características são anicca, dukkha e anattā, respectivamente. As formas de substantivo abstrato são aniccatā, dukkhatā e anattatā. Como características elas são conhecidas como aniccalakkhaṇa, dukkha-lakkhaṇa e anattalakkhaṇa. Os comentários ocasionalmente se referem às Três Características como ‘características universais’ (sāmañña-lakkhaṇa).
Todas as coisas existem em um estado de fluxo, compostas de fatores condicionados interdependentes que surgem e desaparecem em sucessão ininterrupta: as coisas são impermanentes. Devido à sua instabilidade e dependência causal, as coisas estão sujeitas a estresse e atritos, revelando uma imperfeição inerente. E todas as coisas, tanto as condicionadas como o Incondicionado, existem segundo a sua natureza; não possuem um self que atue como proprietário ou governador dos fenômenos.
Os seres humanos também são compostos de elementos constituintes. Os ‘blocos de construção’ dos seres humanos são os cinco agregados; nada mais existe além dos cinco agregados.*
*Os cinco khandhas: forma física (rūpa), sensação mental (vedanā), percepção (saññā) formações volitivas (saṅkhāra) e consciência (viññāṇa). Nos ensinamentos buddhistas esses cinco componentes são tudo o que compõe a unidade mente-corpo de um ser humano. Na verdade, eles constituem todas as coisas mundanas e, como grupo, são sinônimos de saṅkhāra – fenômenos condicionados – das Três Características .
Quando examinamos os cinco agregados, por sua vez, vemos que cada um é impermanente. Sendo impermanentes, eles são dukkha; eles são perturbadores para quem se adere a eles. Sendo dukkha, são vazios de um ego. Eles são vazios porque cada agregado resulta de causas, não são entidades independentes. Além disso, eles não são verdadeiramente sujeitos ao controle ou a ser apropriados pela pessoa. Se alguém verdadeiramente possuísse os cinco agregados seria capaz de controlá-los de acordo com a sua vontade e impedi-los de mudar, por exemplo, para a debilidade ou doença. [70]
Muitos estudiosos têm tentado provar que o Buddha reconheceu um ego existente além dos cinco agregados. Eles afirmam que Ele só repudiou um ego nos fenômenos condicionados, mas que afirmou um ego último, essencial. Além disso, explicam que o nibbāna † é o mesmo que ātman /atta: nibbāna é o Eu. Vou discorrer sobre esse assunto na Parte IV ‡ sobre o Nibbāna.
† sânscrito – Nirvāṇa.
‡ De Buddhadhamma; veja Nibbāna: the supreme peace. Traduzido por Robin Moore.
A maioria das pessoas, especialmente aquelas que cresceram numa cultura que ensina a existência de alguma alma, tende a buscar e apreender algum conceito de uma identidade fixa. Essa forma de interpretação satisfaz uma oculta necessidade inconsciente. Quando a sua auto-identificação com um ou mais dos cinco agregados torna-se insustentável, eles criam um novo conceito de ego em que acreditar. Mas o objetivo do Dhamma do Buddha não é abandonar uma coisa apenas para aderir-se a outra, ou para liberar-se de uma para então ser escravizado por outra. [70/1] Como afirmado anteriormente, as coisas existem de acordo com sua própria natureza. A natureza da existência é determinada pela ausência de uma essência; se as coisas possuíssem uma entidade então, por definição, não poderiam ser como são.
‘Bhikkhus, o corpo é não-eu. Se o corpo fosse o eu ele não levaria à aflição, e seria possível obter do corpo: “Que o meu corpo seja desta forma; que não seja desta forma”. Mas porque o corpo é não-eu, o corpo leva à aflição, e não é possível obter do corpo: “Que meu corpo seja desta forma; que não seja desta forma”.
‘Sensações mentais não são o eu… Percepções não são o eu… Formações volitivas não são o eu… Consciência não é o eu… Pois, se a consciência fosse o eu, ela não conduziria à aflição, e seria possível obter da consciência: “Que a minha consciência seja assim: que não seja assim”. Mas porque a consciência não é o eu, ela leva à aflição e não é possível obter da consciência: “Que a minha consciência seja assim; que não seja assim”.
‘O que vocês pensam, bhikkhus, é o corpo permanente ou impermanente?’ ‘Impermanente, venerável senhor’.
‘Aquilo que é impermanente é doloroso ou agradável?’ ‘Doloroso, venerável senhor’.
‘E o que é impermanente, doloroso e tem a natureza da mudança pode ser considerado assim: “Isto é meu, isto sou eu, este é o meu eu?”’ ‘Não, venerável senhor’.
‘O que vocês acham, monges, os sentimentos são permanentes ou impermanentes?… A percepção é permanente ou impermanente?… São as formações volitivas permanentes ou impermanentes?… É a consciência permanente ou impermanente?’… ‘E o que é impermanente, doloroso e da natureza da mudança pode ser considerado assim: “Isto é meu, isto sou eu, este é o meu eu?” ‘Não, venerável senhor’. ‘Sendo assim, bhikkhus, vocês devem ver qualquer tipo de forma física… Sensação mental… Percepção… Formações volitivas. Qualquer consciência, seja do passado, futuro ou presente, interna ou externa, grosseira ou sutil, inferior ou superior, longe ou perto, como ela realmente é com a sabedoria adequada assim: “Isto não é meu, isto não sou eu, este não é o meu eu”. (S. III. 66-68)
Traduzido por Jorge Furtado para o Centro Nalanda
em acordo com Buddhadhamma Foundation
Para Distribuição Gratuita
© 2011 Edições Nalanda
Nota: “Escritos sobre o Buddha Dhamma” consiste de um conjunto de escritos de um dos mais respeitados monges da Thailândia contemporânea, Venerável Ajahn Payutto.
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