- Por séculos, a religião na Índia foi dividida entre dois movimentos contrastantes, a tradição brahmânica ortodoxa e a tradição asceta (samana) não ortodoxa.
Os brāhmanas ensinavam que a salvação poderia ser alcançada sendo um bom filho e um bom pai, e executando certos rituais fielmente. Os brāhmanas eram casados, geralmente com várias esposas, bem educados no conhecimento sagrado e secular, e mantinham a si e suas famílias com as taxas que eles recebiam realizando os rituais que se acreditava serem essenciais para a prosperidade nesta vida e no céu, na próxima. A tradição asceta, por outro lado, ensinava que a salvação só poderia ser alcançada compreendendo e transformando a mente. Para facilitar isso, renunciar à família e às responsabilidades sociais era considerado uma ajuda para libertar a pessoa de desnecessárias distrações. Experiências com vários exercícios meditativos e de yoga, e também a prática da auto-mortificação foram comuns a esse movimento. Essa tradição era representada pelo asceta (samana, paribbajaka, muni, tapasa, etc) que vivia sozinho, ou em pequenos bandos em uma floresta, ou em uma caverna na montanha, evitando a sociedade e suas convenções. Enquanto alguns ascetas viviam nus, muitos usavam roupas simples, habitualmente tingidas de amarelo, uma cor que os identificava como renunciantes do mundo. Na Índia, o amarelo era a cor da morte ou renúncia porque antes de uma folha cair da árvore ela se torna amarela. Quando o Príncipe Siddhattha renunciou ao mundo, parece que ele automaticamente assumiu que o caminho do asceta, em vez do caminho do brāhmana, poderia levá-lo à verdade.
- Depois que ele se tornou o Buddha, ele viu a necessidade de uma fraternidade de ascetas dedicados a ajudar os outros a alcançar a iluminação e para transmitir o Dhamma através do espaço e do tempo. Consequentemente, como outros professores, ele fundou uma comunidade de monges (bhikkhu sangha), uma entidade autônoma legal, com suas próprias regras e regulações. O Buddha mudou a estrutura e as regras da Sangha conforme novas circunstâncias surgiam e no Vinaya Pitaka temos uma imagem desta evolução gradual. Ao longo dos séculos, enquanto que grandes impérios surgiram e se foram, a Sangha sobreviveu e prosperou, atuando como uma quieta testemunha da forma como o Dhamma deve ser vivido e como um meio para a propagação da civilização em toda a Ásia.
- Para se tornar um noviço (samanera) na Bhikkhu Sangha, tudo que era preciso era se aproximar de um monge com no mínimo dez anos de ordenação e pedir para ser aceito. A constatação que levava à decisão de renunciar ao mundo frequentemente vinha como resultado de ouvir os ensinamentos de Buddha, que geralmente era expresso como: “A vida em família é confinada e empoeirada, abandonar o lar é libertador. Não é fácil para quem mora em casa viver a vida santa perfeitamente completa, perfeitamente pura e polida como uma concha do mar. Suponha que eu corte o meu cabelo e barba, coloque [43] o manto amarelo e passe a não ter casa? Depois de o candidato raspar a cabeça e colocar seu manto, ele tinha que viver de acordo com os Dez Preceitos. O Buddha permitiu que até mesmo jovens se ordenassem como noviços. Depois de um noviço receber formação suficiente e ter pelo menos 20 anos de idade, ele poderia tomar a sua ordenação completa (upasampadā) e tornar-se um monge (bhikkhu).
Para fazer isso, ele teria que convocar uma assembleia de dez monges ou mais, com pelo menos dez anos de ordenação e que fossem respeitados por seus conhecimentos e virtudes. Ao candidato seria então questionado onze perguntas para determinar a sua aptidão, seus motivos e sua preparação. (1) Você está livre da enfermidade? (2) Você é um ser humano? (3) Você é um homem? (4) Você é um homem livre? (5) Você está livre de dívidas? (6) Você tem obrigações para com o rei? (7) Você tem a permissão de seus pais? (8) Você tem, pelo menos, vinte anos de idade? (9) Você tem a sua tigela e seu manto? (10) Qual é o seu nome? (11) Qual é o nome do seu professor? Se o candidato respondeu a essas perguntas de forma satisfatória, depois requereu a mais alta ordenação três vezes, e se ninguém levantou qualquer objeção, ele era considerado um monge.
- Os monges buddhistas chamavam a si próprios e eram conhecidos por outros como ‘Os Filhos do Sakya (Sakyaputta). Um monge poderia usar bens de propriedade comum à comunidade monástica, mas ele próprio só poderia possuir oito essenciais (atthapirika). Eles eram (1) um manto externo (cāvara), (2) um manto interior, (3) um manto grosso para o inverno, (4) uma [44] tigela de alimentos com a qual ele coletava sua comida, (5) uma lâmina, (6) uma agulha e linha, (7), um cinto, e (8) um filtro de água para purificar a água e remover dela pequenas criaturas.
De um monge era esperado carregar tudo o que possuia quando viajasse “assim como um pássaro leva apenas suas duas asas para onde quer que seja”.
- Se as pessoas quiserem presentear um monge, ele poderia aceitar apenas alimentos ou qualquer um daqueles oito itens básicos, qualquer outra coisa – terreno, um edifício, roupa ou grãos, etc – só poderia ser aceita em nome de toda a comunidade e, assim, tornar-se-ia propriedade de todos. Ao se tornar um monge, a pessoa passa a ser obrigada a seguir o Pātimokkha, as duzentas e vinte e sete regras, que norteiam a disciplina e o funcionamento da Sangha. As regras foram divididos em oito categorias de acordo com a punição correspondente caso elas sejam violadas. As regras mais importantes eram as quatro pārājikas que, se um monge quebrasse, ele seria automaticamente expulso da Sangha e não poderia ser ordenado novamente no futuro. Elas eram: (1) relação sexual, (2) roubo, (3) assassinato, e (4) falsamente alegar ter poderes psíquicos ou realizações espirituais. A palavra pārājika significa literalmente ‘derrota’ e significa que a pessoa que quebrou qualquer uma dessas regras foi derrotada por seu desejo, ódio ou orgulho. Outras regras importantes foram os treze sanghadisesa, que em caso de violação, requer a confissão, e nissaggiya pacittiya, trinta regras relativas às posses que, se violadas, são punidos com perda dessas posses. Outras regras regem a etiqueta, resolução de conflitos e administração.
Devido ao fato de que essas regras, as quais estão todas registradas no Vinaya Pitaka, foram feitas para manter a disciplina e resolver os problemas que sempre surgem quando as pessoas vivem juntas, elas não são absolutas. O Buddha disse que poderiam ser alteradas ou modificadas de acordo com as circunstâncias. Antes de atingir o Nirvāna final, ele disse aos monges: “Se quiserem, a Sangha pode abolir as [3] regras menores depois da minha passagem”.
- Como todos os ascetas da época, monges buddhistas passavam a maior parte do ano vagando de lugar para lugar. Essa mobilidade dava aos monges a oportunidade de reunir-se com um grande número de pessoas para as quais eles podiam ensinar o Dhamma e também garantia que eles não pudessem acumular bens. No entanto, uma das regras para monges foi que eles tinham que se assentar e ficar em um local durante os três meses da sessão chuvosa (vassa). Esse período de ficar parado foi necessário em virtude do fato de que qualquer viagem era difícil durante a estação chuvosa, mas os monges usaram isso como uma oportunidade para a meditação intensificada. O número de tais períodos de meditação em retiro que um monge tinha tido era uma marca de sua maturidade e experiência e, em seguida, como agora, quando os monges se conhecem eles perguntam uns aos outros: “Quantas chuvas (vassa) você já teve?”
- Para manter a disciplina e reforçar na Sangha valores comuns, era necessário que os monges tivessem uma vida em comunidade, com a participação de todos. Algumas [46] áreas chamadas de sima eram demarcadas e todos os monges que viviam dentro dessa área se reuniam duas vezes por mês, sendo este encontro chamada de Uposatha.
Durante o Uposatha, o Pātimokkha era recitado, brechas na disciplina eram confessadas e a punição distribuída, questões concernentes à comunidade eram tratadas e, claro, o Dhamma era discutido. Se decisões tinham de ser feitas, cada monge poderia dar sua opinião e tinha o direito de votar nas decisões. O Uposatha tinha um papel importante na reafirmação da identidade da Sangha, fortalecendo o companheirismo e, em particular, preservando e transmitindo o Dhamma.
- No princípio não havia monjas, mas, à medida em que o Dhamma se tornou mais popular e disseminado, as mulheres gradualmente interessaram-se mais em adotar a vida monástica. Durante uma das visitas do Buddha a Kapilavatthu, brevemente após a morte de seu pai, Mahā Pajāpatī Gotamī, sua mãe adotiva, abordou-o e perguntou se poderia ser ordenada. O Buddha recusou-se e Mahā Pajāpatī Gotamī se partiu em lágrimas. Após a partida do Buddha de Kapilavatthu para Vesali, ela raspou sua cabeça, vestiu o manto amarelo e também partiu na direção de Vesali. Ela chegou coberta de poeira, com seus pés cortados e inchados e com lágrimas escorrendo pela face. Ela pediu que Ananda se aproximasse do Buddha e lhe perguntasse, mais uma vez, se poderia ser ordenada. E ele recusou de novo. Ānanda condoeu-se por Mahā Pajāpatī Gotamī e decidiu interceder por ela. Primeiro, perguntou ao Buddha se as mulheres tinham o mesmo potencial espiritual que os homens. Buddha respondeu: “Mulheres, saindo do lar para a vida sem lar no Dhamma e na disciplina ensinada pelo Buddha, são capazes de alcançar os frutos do Vencedor-da-Corrente, do Uma-Vez-Retornante, do Não-Retornante e do Estado de Arahant”. Então Ānanda pediu ao Buddha para considerar o quanto a sua madrasta o ajudou. “Senhor, se as mulheres também podem realizar os mesmos estágios dos homens, e como Mahā Pajāpatī Gotamī foi muito generosa com o senhor – ela é sua tia, sua madrasta, sua enfermeira, ela deu ao senhor o leite dela, e o amamentou quando sua mãe morreu – então, seria bom se as mulheres pudessem deixar o lar e entrar para o caminho do Dhamma e da disciplina ensinada pelo Tathāgata”.
- Por fim, o Buddha concordou, mas estipulou que as monjas deveriam seguir algumas regras adicionais. As regras especiais para as monjas eram: (1) no que se refere a demonstrações de respeito e deferência, um monge sempre terá prioridade sobre uma monja, (2) uma monja deve fazer o retiro das chuvas em um local separado dos monges, (3) as monjas devem consultar os monges sobre a data de observância do Uposatha e ensinamentos do Dhamma, (4) quando uma monja comete alguma transgressão, ela deve confessar perante a comunidade de monjas e de monges, (5) uma monja que tenha violado uma regra importante deve ser submetida a uma punição perante monjas e monges, (6) uma monja deve ser ordenada por uma assembleia composta de monjas e de monges, (7) as monjas não devem agredir ou vilipendiar um monge e (8) uma monja não deve ensinar um monge.
Mahā Pajāpatī Gotamī aceitou estas regras suplementares, e, assim [4], a Ordem de Monjas (Bhikkhuni Sangha) foi inaugurada.
- No entanto, o Buddha parece ter pensado que, com homens e mulheres juntos, a tarefa de manter o celibato (brahmacariya), um aspecto importante da vida monástica, seria difícil. Mais tarde, ele afirmou que agora que havia monges e monjas, uma ordem celibatária só iria durar por quinhentos anos. Curiosamente, sua previsão provou ser bastante precisa. Por volta do 7º século DEC, determinados grupos de monges estavam começando a se casar, uma tendência que, juntamente com outras circunstâncias, eventualmente levou ao declínio do Buddhismo na Índia. Felizmente, na maioria dos países buddhistas, monges e monjas continuam a praticar o celibato e a defender os valores originais da vida monástica.
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Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
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© 2016 Edições Nalanda
Nota: Este artigo é parte da série O Buddha & Seus Discípulos que está sendo traduzida e cujas partes serão publicadas aqui no site.
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