- O capelão do rei Pasenadi era um brāhmana culto, mas supersticioso, chamado Bhaggava Gagga. Era seu trabalho ler horóscopos, dar conselhos sobre a melhor hora para iniciar vários projetos e afastar influências malignas com feitiços e mantras. Ele se encheu de alegria quando sua esposa deu à luz um menino, mas quando o mapa astral do bebê foi feito, sua alegria se transformou em medo. O horóscopo indicava que o menino cresceria com tendências criminosas.
Possuídos por um medo supersticioso, os pais decidiram batizar o garoto de Ahimsaka (“Inofensivo”) na esperança de que isso pudesse atenuar a influência das estrelas. O garoto cresceu e se tornou um jovem bom, que ia bem nos estudos e obedecia seus pais. Porém, para se assegurar de que o jovem jamais se tornaria mau, eles lhe lembravam o tempo todo da importância de obedecê-los e fazer o que se mandava a ele.
Um dia, ele deixou sua casa para ir morar em Taxila a fim de realizar seus estudos superiores. Naqueles tempos, jovens brāhmanas moravam em Taxila na casa de brāhmanas cultos para aprender as tradições e trabalhavam em suas casas como pagamento. O relacionamento era como aquele entre pai e filho. Ahimsaka era um aluno particularmente obediente, o que lhe garantiu uma atenção especial de seu professor, mas também a inveja dos outros alunos. Eles decidiram tentar fazer com que o professor se voltasse contra Ahimsaka. Agindo conforme seu plano, cada um deles foi até o professor com o boato de que seu aluno favorito desejava usurpar a sua posição. De início, o professor não fez caso dos boatos, pensando que se tratasse de besteiras, mas aos poucos as sementes da dúvida foram sendo plantadas, e elas, por fim, brotaram a suspeita e o professor se convenceu da hostilidade de Ahimsaka para com ele. “Esse jovem tem corpo forte e é bem capaz de me fazer mal. Devo me livrar dele e garantir que ele jamais voltará”, pensou consigo. Um dia, ele chamou Ahimsaka e disse:
– “Você completou seus estudos com sucesso, agora deve me pagar de acordo”.
– “Certamente”, disse Ahimsaka. “O que o senhor deseja como pagamento?”
– “Você deve me trazer mil dedos provindos de mãos humanas”.
– “Decerto que o senhor não exige tal coisa de mim!” – respondeu Ahimsaka, horrorizado.
– “Você usou de meus serviços e deve, em troca, atender meu pedido. Vá agora, me traga mil dedos”.
O desejo do professor era, obviamente, que ao tentar cumprir a tarefa, Ahimsaka fosse morto e assim ele jamais o veria novamente.
- O estudante infeliz retornou a Kosala e foi morar na floresta Jalani e, com relutância no início, mas depois sem remorso, passou a atacar viajantes solitários, assassinando-os, cortando um de seus dedos e vivendo das posses que roubava. No começo, ele pendurava os dedos numa árvore, onde os pássaros bicavam a carne, ao que os ossos caíam ao chão e se espalhavam. Então, depois de um tempo, Ahimsaka colocou os dedos num cordão e os pendurou em seu pescoço. Isso lhe deu uma aparência terrível, e, a partir daí o notório e temido assassino passou a ser chamado Angulimala (“Colar de Dedos”). Por fim, através do assassínio e talvez cortando dedos de cadáveres, que na Índia antiga não eram enterrados, mas jogados em cemitérios a céu aberto, Angulimala acumulara 999 dedos.
- Seus pais ouviram dizer que o assassino de quem todos falavam era seu próprio filho. Constrangido e envergonhado, o velho brāhmana deserdou seu filho.
Sua mãe não foi capaz de fazer isso e planejou ir para a floresta onde se dizia que seu filho atuava para tentar falar com ele. No momento em que Angulimala estava prestes a matar até mesmo sua própria mãe, ele encontrou com o Buddha.
- Quando o Buddha ouviu falar de Angulimala, ele deixou Jetavana em silêncio e partiu rumo à floresta de Jalani, a uns quarenta quilômetros de distância. Enquanto o Buddha seguia pela estrada, grupos de viajantes que passavam por ele o alertavam para que não continuasse, por conta do perigo. Ele simplesmente sorria e seguia seu caminho.
Quando Angulimala viu o Buddha, ele se surpreendeu muito. “Isso é deveras maravilhoso. Normalmente, apenas grupos de vinte, trinta ou quarenta viajantes vêm por essa estrada e eis aqui um asceta viajando sozinho. Vou matá-lo”.
Tomando sua espada e escudo, Angulimala emergiu das matas e começou a perseguir o Buddha, mas, embora corresse o máximo que era capaz, não conseguia alcançar o Buddha, que apenas caminhava. Ele empenhou grande velocidade, mas ainda era incapaz de se aproximar do Buddha. Completamente desorientado, ele gritou: – “Pare aí, asceta!”
O Buddha virou e o encarou, e respondeu: – “Estou parado. Por que você também não para?”
Ainda mais desorientado, Angulimala perguntou: – “O que você quer dizer com isso, asceta?”
“Estou parado no sentido de que eu não causo mal a nenhum ser vivo. Você mata e, portanto, você não parou”, respondeu o Buddha.
- As coisas terríveis que tinha feito e as condições deploráveis de sua vida se fizeram claras a Angulimala e ele desabou em soluços. Jogando suas armas no chão, ele se curvou aos pés do Buddha e se tornou um monge.
O Buddha o ordenou e juntos eles foram para Savatthi. Alguns dias depois, estando o Buddha e Angulimala sentados em Jetavana, o rei Pasenadi e sua companhia de soldados fortemente armados vieram fazer uma visita.
“Aonde vai, ó rei?”, perguntou o Buddha. “Começou alguma disputa fronteiriça com o reino de Magadha?”
“Não, Senhor” – disse o rei. “Há um terrível assassino atuando no reino. Por causa dele, pessoas nas áreas circundantes tomam suas posses, deixam suas vilas e se mudam para a segurança da cidade. Agora os cidadãos me suplicaram para que me livrasse dele, e estou partindo em sua busca”.
“Se você ouvisse que esse assassino desistiu de sua vida terrível e se tornou um monge, o que faria, ó rei?”
“Suponho que eu me curvaria a ele e o trataria como a qualquer outro monge. Mas tal coisa é possível, Senhor?”
O Buddha estendeu seu braço e disse: “Este, ó rei, é Angulimala”.
O rei recuou amedrontado, mas o Buddha o tranquilizou: “Não tema, ó rei. Não é preciso se alarmar”.
O rei se aproximou, olhou com cuidado para o monge e disse: “Este é mesmo Angulimala, Senhor?”
“Sim, ó rei”.
Então ele se dirigiu a Angulimala: “Qual é o nome de seu pai? A qual clã pertence sua mãe?”
“Meu pai é Gagga e minha mãe, uma Mantani”.
“Que gozem, então, de boa saúde. Se precisar de mantimentos, me esforçarei para oferecê-los a você”, disse o rei, nervoso.
“Eu agradeço, senhor, mas me bastam os meus mantos”, respondeu Angulimala.
Então o rei Pasenadi veio se sentar perto do Buddha e disse: “Senhor, em verdade é maravilhoso que, sem clava ou espada, o senhor é capaz de pacificar aqueles que eu não sou capaz de pacificar com clava e espada”. O Buddha sorriu.
- Angulimala levou uma vida simples e solitária, e sob a tutela do Buddha, eventualmente atingiu a iluminação. Porém, ainda sim, havia muitos que se lembravam de seu passado terrível, e as pessoas o evitavam. Muitas vezes, ele não recebia nenhum alimento quando pedia alimento, e por vezes as pessoas atiravam pedras nele. Uma vez, ele foi pedir alimento e voltou sem comida, com sangue e cortes por todo seu corpo, tendo sido atacado por uma turba raivosa. O Buddha o consolou dizendo: “Você deve suportar isso, Angulimala. Você deve suportar isso em silêncio. É o resultado dos atos que cometeu no passado”.
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Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
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Nota: Este artigo é parte da série O Buddha & Seus Discípulos que está sendo traduzida e cujas partes serão publicadas aqui no site.
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