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~ Sulak Sivaraksa ~
Uma Nova Interpretação do Conceito Buddhista de Interdependência e a Aplicação dos Cinco Preceitos à Situação Contemporânea
O Buddhismo, através da insistência na interdependência de tudo o que é vivo, dos ensinamentos de compaixão por todos os seres, da não violência e de seu cuidado com tudo que existe, vem apontando, a alguns buddhistas contemporâneos, para interpretações mais abrangentes e mais profundas do relacionamento entre a paz e a justiça social, meio-ambiental, racial e sexual.
Nessa área, devemos ser inspirados por exemplos de movimentos como os do Ven. Bhikkhu Buddhadasa e seu Jardim da Liberação na Thailândia, sem contar as práticas de meditação do Ven. Phra Ajahn Chah Subaddho e o erudito trabalho do Ven. Phra Debvedi (Payutto) que inspirou, não somente thailandeses, mas monges estrangeiros como o Ven. Sumedho, que levou a mensagem buddhista de preocupação social para a Europa, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia. Contudo, nesse artigo, eu queria somente concentrar em um monge vietnamita, Thich Nhat Hanh, que nos ensina a prestar muita atenção para as diminutas particularidades das nossas ações, assim como à gigante teia de toda a vida.
Ele particularmente enfatiza o não dualismo nos seus ensinamentos e o tornar-se pacífico nos diversos momentos das nossas vidas como parte integrante do tornar o mundo um lugar pacífico. Ele enfatiza a continuidade entre o que está dentro e o que está fora, chamando o mundo de o “eu maior”, e nos pede para nos tornarmos isso e cuidar disso.
A sua ordem Tiep Hien, criada no Vietnam durante a guerra, vem da linhagem da escola Zen de Lin Chi. É uma forma de Buddhismo engajado na vida cotidiana, na sociedade. A melhor tradução de Tiep Hien, de acordo com Thich Nhat Hanh, é a “Ordem do Inter-Ser”, que ele explica da seguinte forma: “Eu sou, então você é. Você é, então, eu sou. Esse é o significado da palavra inter-ser. Nós inter-somos”.
A ordem do Inter-Ser é projetada explicitamente para endereçar problemas/assuntos relacionados à justiça social e à paz, sensibilizando o participante a testar o seu comportamento em relação às necessidades de uma comunidade maior, enquanto se libertam dos seus padrões limitantes. Mesmo a forma como tomamos refúgio nas Três Joias é explicada de forma simples e bonita:
Eu tomo refúgio no Buddha,
Aquele que me mostra o caminho nessa vida,
Namo Buddhaya
Eu tomo refúgio no Dhamma,
O caminho do entendimento e do amor,
Namo Dharmaya
Eu tomo refúgio na Sangha,
A comunidade de diligente harmonia,
Namo Sanghaya
Thich Nhat Hanh reviu os Cinco Preceitos para tratar dos assuntos da mente, da fala e do corpo:
Primeiro, não mate. Não deixei outros matarem. Encontre quaisquer meios possíveis para proteger a vida. Não viva com uma inclinação prejudicial aos humanos e à natureza. Segundo, não roube. Não possua nada que pertença a outrem. Respeite a propriedade alheia, mas impeça que outros enriqueçam a partir do sofrimento humano ou do sofrimento de outras espécies da Terra. Terceiro, a expressão sexual não deve acontecer sem amor e compromisso. Esteja completamente consciente do sofrimento que você pode causar aos outros como resultado de seu comportamento inapropriado. Para preservar a sua felicidade e a dos outros, respeite os direitos e compromissos dos outros. Quarto, não diga falsidades. Não espalhe notícias das quais você não tem certeza da veracidade. Não critique ou condene coisas que você não ter certeza. Não pronuncie palavras que causem divisão ou ódio, que possam criar discórdia e que causem o rompimento de uma família ou comunidade. Todos os esforços devem ser feitos para reconciliar e resolver conflitos. Quinto, não tome bebidas alcoólicas ou qualquer outro intoxicante. Esteja ciente de que seu corpo perfeito foi transmitido a você por diversas gerações passadas e de seus pais. Destruir o corpo com álcool e outros intoxicantes é trair seus ancestrais, seus pais e também trair as futuras gerações.
Esses preceitos criam a consciência de justiça social e do trabalho pela paz (sendo mesmo um precedente a eles), fundados firmemente em princípios buddhistas em nosso ser individual e em nossa prática de vigilância. Também, Thich Nhat Hanh frequentemente nos lembra: “Não se percam em dispersões e nos seus arredores. Aprendam a praticar a respiração a fim de recuperar a compostura do corpo e da mente, para praticar a vigilância, e para desenvolver a concentração e o entendimento”.
Esses princípios orientadores alcançam uma integração dos tradicionais cinco preceitos com os elementos do Nobre Caminho Óctuplo, e acredito que a decisão de Thich Nhat Hanh de elaborar mais os preceitos tradicionais veio da sua observação de que se pode interpretar esses preceitos de forma a encorajar uma retirada do mundo, uma passividade frente à guerra e à injustiça, uma separação do indivíduo do lugar comum da humanidade. Quando reescreve os preceitos, ele está se contrapondo a essa tendência. Ao nos direcionar a focar nas nossas interconexões com os outros seres, ele está nos pedindo para experienciar a continuidade entre o mundo interno e o mundo externo, para agir em colaboração, em mutualidade com os outros no dinâmico desenrolar da verdade que promove a justiça e cria paz.
A Rede Internacional de Buddhistas Engajados: Um Começo Esperançoso para a Solução dos Problemas Globais
Alguns de nós estamos tentando enfrentar esses desafios e faço votos de que aquilo que estamos tentando fazer (conectando o nosso “estar pacífico” no mundo interno ao mundo externo de forma engajadora e vigilante) irá contribuir para um mundo melhor: com justiça social, não violência e equilíbrio ecológico, ou seja, o Caminho do Meio para cada indivíduo e para sociedade em geral, para viver em harmonia com os outros e com a natureza.
Grupos de jovens no Ocidente que acreditam nesses princípios e que tentam agir de acordo com eles vêm estabelecendo grupos importantes da Buddhist Peace Fellowship nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Austrália.
Além disso, alguns de nós também tentamos encontrar-se com colegas buddhistas de mesmas opiniões a fim de solucionar problemas globais de forma concreta, levando alguns assuntos relevantes de justiça social caros a nós, que sentimos que poder tratar de forma individual e coletiva, com a ajuda de bons amigos (kalayamamitta), em outros países e culturas. Assim, no último mês de fevereiro, em uma pequena cidade nos arredores de Bangkok, 45 buddhistas de todos os lugares do mundo, incluindo um representante da ABCP, se reuniram:
a) Para identificar problemas sociais urgentes que existem em um cada um dos países assim como aqueles afetando outras comunidades buddhistas;
b) Para explorar os caminhos através dos quais os participantes poderiam cooperar quando da ação sobre esses problemas;
c) Para estabelecer uma rede entre os buddhistas engajados em um nível global.
Foram montados quatro grupos de trabalho para explorar diferentes assuntos: educação, assuntos relacionados às mulheres, direitos humanos, e espiritualidade e ativismo.
Não é apropriado dar maiores detalhes dessa reunião aqui. Contudo, desde que alguns buddhistas ficaram cientes das deficiências da World Fellowship of Buddhists e de organizações similares, eles agora estão determinados a montar a Rede Internacional dos Buddhistas Engajados (INEB, em ingles [1]), com os seguintes objetivos: promover o entendimento entre os países buddhistas e as várias denominações buddhistas; facilitar e se engajar na solução de problemas em vários países; ajudar a trazer a perspectiva do Buddhismo engajado à solução desses problemas; agir como um órgão centralizador das informações sobre os grupos e atividades do Buddhismo engajado (e de outros grupos relevantes não-buddhistas); e ajudar na coordenação dos esforços quando possível.
Eles irão inicialmente envolver grupos e indivíduos trabalhando nas áreas a seguir: educação alternativa e treinamento espiritual; ativismo da paz, direitos humanos, temas femininos, ecologia, preocupações sobre a família, desenvolvimento rural, economia alternativa, comunicação e questões sobre monges e monjas. Isso pode ser expandido futuramente.
Estou confidante de que esta rede recentemente estabelecida colaborará de forma significativa com nossas organizações de base na aplicação do Buddhismo na solução de problemas globais.
Fonte: Buddhism and Global Nonviolent Problem Solving – Ulan Bator Explorations (August 1989), Editado por Glenn D. Paige e Sarah Gilliatt, Universidade do Havaí (1991). http://www.hawaii.edu/uhip/buddhism.html
[1] International Network of Engaged Buddhists
Traduzido por Oscar Rodrigues Simões
para o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda
© da tradução, 2012 Edições Nalanda
Nota: “Solucionando Problemas Globais” marca o início do INEB (Rede Internacional de Buddhistas Engajados) e discorre sobre as questões que o Buddhismo deve enfrentar para se tornar relevante em termos sociais globais. Sulak Sivaraksa é um dos principais líderes e articuladores do Buddhismo Engajado. O INEB foi estabelecido em 1989 com líderes buddhistas como o 14. Dalai Lama, o monge vietnamita e ativista pela paz Thich Nhat Hanh e o monge Theravada Maha Ghosananda, como seus patronos. Sulak se considera um aluno de Tan Ajahn Buddhadasa e é um amigo do Centro Nalanda.
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