Quando se trata de eliminar a pobreza, a caridade privada não pode substituir a política pública.
Neste mês, há 50 anos, em seu primeiro discurso oficial ao povo americano, o presidente Lyndon Johnson declarou “guerra incondicional à pobreza na América”. Johnson exortou o congresso e os americanos a se unirem a ele na luta contra a pobreza; era uma luta, ele disse, que não podemos “nos permitir perder”. Johnson entendeu que para melhorar a condição dos destituídos, temos de atacar a causa-raiz da pobreza e não apenas seus sintomas.
Nos anos seguintes, a administração Johnson deslanchou uma série de programas, alguns dos quais estão conosco até hoje, para oferecer aos pobres melhor educação, melhores cuidados de saúde, trabalhos melhores e casas melhores. Eles incluíam Medicare e Medicaid, Head Start, melhor fundo para educação K-12, empréstimos para estudantes de baixa renda, assistência residencial para famílias de baixa renda e ajuda legal para os pobres. Com Johnson, o projeto-piloto para a alimentação tornou-se um programa permanente que, eventualmente, eliminaria a desnutrição que nos anos 60 fazia parte dos Estados Unidos, semelhante a um país de Terceiro Mundo.
No entanto, na política como na física, para cada ação há uma reação igual e oposta, e não demorou muito para que a Direita denunciasse a guerra contra a pobreza como um fracasso. Presidente Reagan liderou o caminho com a seguinte frase: “Nós fizemos uma guerra contra a pobreza e a pobreza venceu”. Essa ideia tem se repetido ao longo das décadas, decorada com relatos de rainhas da previdência dirigindo Cadillacs, gourmets desempregados e surfistas arrecadando vale-refeição. Se as pessoas permanecem pobres, dizem-nos, é porque os programas de assistência tornam a vida muito fácil para elas. A melhor maneira de ajudá-las a escapar da armadilha da pobreza é, dessa forma, reduzir ou abolir os programas que lhe sejam destinados. O resultado, desde a década de 80, tem sido um corte nos gastos públicos e hoje o corte paira sobre vários programas críticos, incluindo vale-refeição.
Mas enquanto é muito fácil propagar mitos como se fossem a mais pura verdade, os fatos falam por si mesmos com clareza suficiente. Embora tenha havido sem dúvida abusos em programas de governo, a evidência mostra que esses programas funcionam. Entre 1967 e 2012, eles ajudaram a reduzir a taxa global de pobreza de 26% para 16%, e a pobreza infantil de 29% para 19%. De acordo com o Escritório para o Censo Suplementar de Medição da Pobreza, a rede de segurança hoje eleva 41 milhões de pessoas, dos quais 9 milhões de crianças, acima da linha de pobreza. Somente em 2011, o vale-refeição manteve 4,7 milhões de norte-americanos, incluindo 2,1 milhões de crianças, fora da pobreza.
Contudo, apesar dos progressos inegáveis, a pobreza nos EUA ainda é galopante. Em 2012, quase 50 milhões de pessoas foram contadas como pobres, com 16 milhões “extremamente pobres” que vivem abaixo de metade da linha da pobreza. Esses números lembram-nos que ainda temos muito a fazer para tornar este país num paraíso de justiça social e econômica. Os falcões do déficit lamentam que não podemos nos dar ao luxo de gastar em programas que ajudem os pobres, mas a verdade é que a nossa capacidade de luta contra a pobreza não é bloqueada por uma escassez de recursos, mas sim por políticas e leis que beneficiam os ricos à custa de todos os outros. Ao longo do último meio século, a parte da riqueza do país que vai para 1% dos domicílios de topo mais do que duplicou. Entre 2009 e 2010, 93% de todo o rendimento gerado foi para o 1% mais alto; apenas 7%, migalhas da mesa, foi para os 99% restantes. Enquanto os rendimentos dos ricos têm subido, aos trabalhadores do setor de fastfood e serviços são pagos salários mínimos, sem benefícios adicionais. Frequentemente são forçados a ter dois empregos só para sustentar as suas famílias, e uma doença em casa pode ser uma catástrofe financeira.
Nós temos os recursos para superar a pobreza. A grande questão, como sempre, é se temos a vontade de fazê-lo. Observando de uma perspectiva buddhista a persistência da pobreza, podemos detectar entre os debates deliberativos uma disputa entre duas concepções contrárias da natureza humana, cada uma levando a uma visão moral distinta. Uma delas toma as pessoas como essencialmente separadas, responsáveis apenas por seus interesses pessoais e seu círculo estreito de familiares e amigos. Dessa perspectiva, estamos todos condenados a uma competição inevitável contra os demais pelas boas coisas da vida, e a melhor maneira para garantir nosso sucesso é aumentar nosso poder e influência para formular políticas públicas em nosso favor. Esse ponto de vista vê os pobres como fracassos, como rejeitados que devem pacientemente suportar seu destino lamentável. Nós temos a obrigação de ajudá-los, claro, mas nossa ajuda deve ser considerada um ato de caridade privada, não um artigo em uma plataforma política – e, portanto, não é nossa responsabilidade coletiva.
Do outro ponto de vista, também proporcionado pela visão buddhista, vemos as pessoas como responsáveis umas pelas outras e, na verdade, da perspectiva superior, vemos os outros como nós mesmos, interdependentes e a se sustentarem mutuamente, cada um no todo e o todo em cada um. Desta perspectiva, vemos os outros não como obstáculos para o nosso próprio sucesso, não como meros meios para avançarmos, mas como fins em si mesmos, e como merecendo uma oportunidade justa de desenvolverem as suas capacidades ao máximo. Apesar das inerentes limitações da nossa habilidade pessoal para ajudar todas as pessoas que necessitam, nós somos obrigados a contribuir algo para o bem-estar da nação a que pertencemos e nas comunidades em que participamos. Esta obrigação não é meramente pessoal. Estende-se à nossa voz coletiva, o estado, como o órgão da política nacional, e devemos nos esforçar para verificar que ninguém careça dos serviços básicos para uma vida decente.
Nesta visão, a pobreza reflete negativamente não apenas sobre aqueles que afeta, mas em nossa ordem social, a nossa nação, e até nós mesmos, a cada um de nós individual e coletivamente. Se alguns são pobres em nosso meio, confrontados com uma luta diária para pagar pela comida, aluguel e contas médicas, isto, em parte, é porque eu também sou pobre – insuficientemente dotado de amor, compaixão e senso de justiça que possam motivar-me a corrigir a sua pobreza. Mas podemos agir juntos, e o fazemos através da adoção de programas e políticas que irão melhorar a sorte daqueles que não podem ajudar a si mesmos. Nós o fazemos a partir de uma profunda convicção de que cada pessoa humana possui dignidade intrínseca e lhe deve ser dada a oportunidade de perceber aquela dignidade. E nós o fazemos, também, a partir da fé que surge de que quando as pessoas são tratadas com respeito, elas vão retribuir, agindo com responsabilidade a partir de sua dignidade interior.
A pobreza ainda persiste hoje em dia porque perdemos a perspectiva moral como sendo a estrela polar da política pública. Em vez disso, seguimos a lei da selva, contentes em abandonar os pobres à própria sorte, exigindo que eles mobilizem recursos que simplesmente não possuem. E a razão por que mudamos nesta direção, afastando-nos dos altos ideais da era da Grande Sociedade, é porque a visão e os valores do capitalismo corporativo ganharam ascendência sobre aqueles da solidariedade humana e de responsabilidade mútua. Para eliminar a pobreza, essa tendência tem de ser invertida. A visão individualista deve dar lugar a uma que salienta nossa unidade essencial, a concorrência deve ser equilibrada por assistência mútua e respeito.
Mais coisas além da eliminação da pobreza dependem disso. A longo prazo, isso pode de fato ser a condição necessária para salvar a própria civilização.
Ven. Bhikkhu Bodhi é um monge buddhista theravada natural de Nova York. Ele é ex-editor da Buddhist Publication Society em Kandy, Sri Lanka, e tem o crédito de muitas publicações importantes, sendo a mais recente sua tradução integral do Anguttara Nikāya (Wisdom Publications, 2012). Em 2008, ele fundou a Buddhist Global Relief, uma organização sem fins lucrativos de combate à fome e amparo à educação em países que sofrem de pobreza crônica e desnutrição.
Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
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