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~ Ven. Ottama Sayadaw ~

Conteúdo

Parte 1

Se quisermos compreender

Se quisermos compreender os ensinamentos do Buddha em sua dimensão original – em sua magnitude e significância irredutíveis – é necessário que tenhamos a correta compreensão de três princípios básicos que formam a estrutura do Ensinamento: kamma, renascimento e saṁsāra. Para a maioria dos buddhistas da Ásia, essas são apenas três realidades da vida. Para a maioria dos ocidentais, no entanto, elas são muitas vezes três grandes pontos de interrogação.

Não é que não temos ideia de todo do que significam.  Acho que todos nós temos pelo menos uma vaga ideia do que estas palavras indicam.  O conceito de “saṁsāra” pode ser menos familiar, mas pensar em termos de “kamma” e “renascimento” tornou-se por vezes quase uma moda.  O que é comum, no entanto, para muitas pessoas hoje em dia, é uma sensação persistente de incerteza, hesitação, ambivalência e dúvida sobre a real validade dos ensinamentos sobre kamma, renascimento e saṁsāra. “Até que ponto”, vocês podem ter-se perguntado, “é que estes ensinamentos pertencem à categoria das metáforas e parábolas, os mitos arquetípicos, ou ferramentas hábeis de educação ética, e em que medida são eles, de fato, princípios reais de funcionamento da nossa vida e universo?  São estas teorias para ser consideradas literalmente,  ou são apenas os remanescentes de um paradigma religioso antigo já não relevantes para seres humanos neste idade pós-moderna?”

Nos próximos capítulos eu vou fornecer algumas explicações e observações pessoais quanto ao significado destes três princípios do Ensinamento do Buddha. Não quero que aceitem passivamente as ideias apresentadas aqui. Meu objetivo, na verdade, seria estimular vocês para que possam cristalizar o próprio entendimento, figurando suas próprias respostas a todas essas questões vitais e abrangentes. Não vou promover uma inundação de provas e histórias impressionantes para forçá-los a aceitar a lei do kamma e do renascimento. Acho que já foi feito o suficiente neste campo e, para falar a verdade, não me entusiasmo com este tipo de abordagem. No meu entender, estes relatos de vidas passadas reforçam uma visão estreita e parcial do renascimento, e me parece duvidoso que possam transmitir às pessoas um entendimento mais profundo do mistério da vida e da morte.

Deixem-me ilustrar o meu ponto de vista com um exemplo: se abordássemos pessoas nas ruas de qualquer cidade europeia e lhes perguntássemos sem quaisquer rodeios: “Pensam que voltarão a renascer depois de morrer?”, talvez um terço respondesse “não”, outro terço – incluindo aqueles que acreditam numa religião tradicional – diriam “sim”, e o outro terço hesitaria dar qualquer resposta. Se tomarmos os Ensinamentos do Buddha como ponto de referência, então os três grupos estarão de certa forma certos e de igual forma errados.

De acordo com o Ensinamento, na hora da morte o corpo e a mente dissolvem-se e o mesmo corpo e a mesma mente nunca mais aparecerão de novo. Neste ponto, o primeiro grupo parece estar correto. No entanto, as forças vivas acumuladas, o potencial kâmmico acompanhado da ânsia pela existência criarão uma nova mente e um novo corpo, originando um novo ser. Assim, o segundo grupo parece estar correto. Mas, de acordo com o Ensinamento do Buddha, não existe um “eu” permanente que possa renascer. A própria questão é formulada de forma errada. Neste sentido, o terceiro grupo, que não adota nenhuma posição definida, talvez tenha respondido da maneira mais apropriada.

Do exemplo acima podemos ver que a abordagem dual “sim-ou-não” dos complexos problemas espirituais geralmente falha. A atitude rígida preto-ou-branco pode não ser suficientemente refinada para abordar e expressar os níveis profundos da realidade. É simplesmente rígida e simplista demais. O que provará ser mais útil a penetrar na verdade é atender à verdadeira natureza das coisas com uma mente cuidadosa, aberta e sensitiva. Neste texto gostaria de mostrar a vocês o caminho para uma nova dimensão na compreensão da nossa vida e morte, de toda a nossa existência.

Embora nossa visão de mundo tenha passado por muitas mudanças drásticas, a mentalidade ocidental ainda é fortemente comprometida com a crença de que a mente é um subproduto da função cerebral e que, portanto, a morte do corpo significa um fim definitivo à continuidade da vida e do fluxo da experiência consciente. Esta crença parece plausível, simples, lógica; talvez um pouco simples demais, pois induz as pessoas a pensar: “É só tirar o melhor proveito da sua presente vida e danem-se as consequências”. O Buddha rejeitou essa perspectiva materialista e disse que não está de acordo com a realidade. Além disso, podemos ser facilmente enganados por esta teoria. Quando adotamos a visão errônea de que nossas boas e más ações têm pouco ou nenhum impacto sobre a qualidade da nossa vida, tal visão pode levar-nos à ruína.

A teoria materialista não é por natureza “má” ou “diabólica”. Muito possivelmente, os materialistas da época do Buddha foram pessoas honradas, moderadas e humildes. O problema com essa filosofia está no fato de que descreve a inexprimível, inefável natureza do universo de uma forma tão restrita e unilateral que podemos nos referir a ela como uma verdadeira distorção da realidade.

Um desconfortável sentimento de apreensão ou de inquietude pode surgir quando refletimos sobre os ensinamentos de kamma, renascimento e saṁsāra da perspectiva da nossa própria existência: esses temas apontam diretamente para a nossa vida e a nossa morte, e para o que se segue. Enfrentarmos a nossa morte, e decifrarmos o mistério que está por detrás dela, é uma área difícil para todos nós. Nós sentimos – com inquietação – que não temos muito controle nesse processo. Algumas pessoas tentam contornar esses tópicos apenas para evitar a ansiedade e a confusão que os domina quando refletem sobre eles. No entanto, tal atitude é semelhante à de um paciente com dor de dentes, que toma analgésicos continuamente, em vez de ir ao dentista.

Para o Buddha, uma visão clara de suas próprias vidas passadas no saṁsāra e uma extensa visão dos efeitos do kamma nesse processo de renascimento incessante e recorrente, foram duas descobertas preparatórias que ele experienciou na noite de sua iluminação. Esses dois conhecimentos desencadearam o conhecimento final, o despertar para as Quatro Nobres Verdades, culminando na superação das “ulcerações” (āsavas), o atingimento da libertação completa, o atingimento do estado de Buddha.

Nossa motivação para praticar o Dhamma e nossa confiança na validade da mensagem do Buddha estão frequentemente relacionadas com o grau com que nós compreendemos kamma, renascimento e saṁsāra. Podemos nos beneficiar muito de uma compreensão mais profunda desta parte da doutrina do Buddha. Portanto, vou tentar apresentar estes três temas aqui de uma forma não dogmática do ponto de vista da cultura ocidental, usando a linguagem de uma mente formada no ocidente. Embora os três princípios estejam intimamente ligados, para os meus propósitos neste ensaio vou tentar apresentá-los separadamente, na medida em que seja possível.

 

Kamma

O princípio do kamma não é nada completamente estranho para nós, nada que já não conheçamos intuitivamente até certa medida. É a lei de que toda ação tem algum efeito. Além disso, nossas ações afetam a qualidade de nossa mente; cada uma de nossas ações tem um impacto em nossa mente, e, portanto, a qualidade de nossa mente tem uma influência direta da qualidade da nossa vida. Nós conhecemos essas relações. O ensinamento do kamma, no entanto, vai muito mais a fundo e fornece uma explicação mais completa de todo processo. Em nossa cultura somos acostumados a medir a qualidade de nossas ações predominantemente pelo impacto que elas têm em nosso entorno. Ao invés disso, no ensinamento do kamma nós focamos nos efeitos que nossas várias ações têm sobre nós mesmos como agentes da ação.

Todas as ações do corpo, da fala e da mente são kamma. Mais precisamente, kamma é a volição ou intenção (cetanā) por detrás da ação. Essas volições kâmmicas encerram em si o potencial de causar um determinado resultado correspondente, um vipāka. As volições são como as sementes, os resultados que ocasionam são como frutos. Na linguagem coloquial, frequentemente entendemos kamma como todo o potencial acumulado de todas as volições passadas e presentes que ainda não produziram os seus efeitos.

 

Um Paralelo com a Física

O ensinamento do kamma é análogo à lei da física de preservação da matéria e da energia. Esta rudimentar lei da física nos diz que as coisas não desaparecem absolutamente. Em nosso universo relativo apenas transformações físicas e químicas acontecem, mas nada totalmente desaparece. Você não pode destruir mesmo uma gota de água. Se ela seca ou evapora, vai mais tarde recondensar; se ela congela, ela irá um dia derreter novamente. Você pode decompô-la em eletrólise em hidrogênio e oxigênio, mas se você colocar um fósforo aceso nesta mistura gasosa haverá uma pequena nuvem, e nas paredes do recipiente a umidade vai aparecer como as “cinzas” do fogo. (Você ainda se lembra das aulas de física, onde os experimentos sempre foram um pouco errados?)

Se desintegrarmos os átomos de uma gota d’água, obteríamos uma quantidade de energia terrificante: E=mc² (energia=gota d’água x a velocidade da luz)! A energia pode cristalizar de volta em matéria como podemos testemunhar nos aceleradores de alta energia, mas é bem mais provável que mudasse para outra forma de energia. Energia solar é um bom exemplo. No Sol, átomos de hidrogênio se fusionam em hélio. Essa fusão nuclear libera radiação energética no cosmos e assim temos a luz do Sol na nossa Terra. O verde da clorofila das plantas absorve a luz e as árvores crescem. Vocês cortam a árvore e fazem fogo. A energia estocada no Sol cozinhará seu alimento na fogueira do acampamento. Ainda, combustível fóssil explode nos cilindros dos motores. A antiga energia de nosso sol primitivo é ativada e seus carros seguem muito velozes até o próximo sinal vermelho. Vocês apertam o freio e transformam a energia cinética dos seus carros no calor dos freios.

Podemos viver alegremente inconscientes destes complexos processos físicos e químicos, mas não podemos negar a sua existência. O ensinamento de kamma pode ser considerado uma extensão desta lei universal – a lei da conservação de energia – vinda do reino visível da matéria para a dimensão mais sutil da mente. Também aqui, os impulsos mentais não desaparecem sem traço. Mais, cada uma das nossas volições deixa para trás uma impressão ou rebento de energia nas nossas mentes, e quando estes impulsos kâmmicos amadurecem, sob condições externas apropriadas, eles farão aparecer algum resultado. Não se enganem: os processos mentais não são fracos ou insignificantes. Vocês pensam que os novos aviões foram desenhados pelos grupos de trabalho e ateliers da Boeing? O avião foi primeiro criado pela mente: pelos pensamentos, conceitos e ideias dos engenheiros e artesãos da Boeing. Verdadeiramente, a mente é o precursor de todas as ações, o arquiteto da totalidade da nossa civilização.

 

A Água que Busca o Mar

O Buddha descreveu o Nibbāna como Não-nascido, Não-originado, Não-criado, Não-formado (Udāna 8:3). A partir deste ponto de vista, qualquer coisa e todas elas perturbam a não-originada e primitiva paz e ‘salubridade’ do Não-formado e, assim, algum fenômeno se manifesta. No nível macroscópico, por nossas volições, nos afastamos do equilíbrio do “saldo zero” não-manifestado e agimos. Em relação à paz, qualquer vontade, boa ou má, é uma perturbação, um tipo de “dívida” que precisa ser “paga de volta”, um desequilíbrio que busca a restauração do equilíbrio. O equilíbrio perdido ou quebrado tem a tendência inerente para curar-se e assim reestabelecer o equilíbrio original.

Ven. Narada Mahathera escreveu: “Tão certo quanto a água procura seu próprio nível, assim também o kamma, dada a oportunidade, produz seu resultado inevitável”. O resultado, ou vipāka, é o amadurecer do kamma, a “devolução”, a ocasião em que uma potência kâmmica particular descarrega sua energia na forma de um resultado. Uma pequena parte do todo original foi reinstalado.

Este modelo de kamma é apenas um áspero esboço, e eu admito que de várias formas isso não é correto. Porém, penso que é o suficiente para explanar o que eu quero dizer: que o nascido ou formado é algo que está fora do equilíbrio, algo que está inerentemente quebrado ou fraturado.

A analogia da água chegando em nível do mar pode dar a impressão de que, antes de alcançarmos a liberação final, cada um e todo kamma tem de produzir seu resultado. Nos ensinamentos do Buddha isso não vem ao caso de modo algum. É possível que algum kamma antigo tenha de dar frutos, mas certamente nem todo o kamma de uma pessoa precisa frutificar antes que ela se ilumine. Nos ensinamentos do Buddha há quatro níveis de iluminação, cada um dividido em quatro estágios de “caminho e frutos” (magga-phala).

Cada nível de realização purifica ou desativa uma certa porção do kamma prejudicial acumulado.  O primeiro e segundo eliminam as formas grosseiras de kamma prejudicial, que podem causar o renascimento em reinos inferiores. O terceiro estágio corta o kamma que possa produzir renascimento na esfera da existência sensorial. O quarto nível arranca todas aquelas forças kâmmicas que podem causar qualquer tipo de renascimento. No entanto, mesmo o Arahant, aquele que se libertou, ainda tem algum kamma restante, que sustenta a sua mente e o seu corpo até a sua morte.

Apenas o clímax final da prática do Dhamma, parinibbāna, o passamento do arahant, invalida completamente, anula, e desativa o potencial kâmmico acumulado. Ao longo do caminho, contudo, como uma instrução geral, o Buddha encoraja claramente a execução de ações saudáveis: “Abstenham-se de todo o mal, façam ações boas, purifiquem a vossa mente” (Dhp 183). No Anguttara Nikāya (VII, 58) ele inequivocamente estimula os seus seguidores a executar ações saudáveis.

 



Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
em acordo com o Autor

© 2011 Edições Nalanda


Nota: Ensinamentos sobre o Kamma” consiste de um ensaio moderno sobre a doutrina do kamma (skr. karma, ação) no Buddhismo, escrito pelo venerável Ashin Ottama Sayadaw. Ashin Ottama é monge buddhista e professor na linhagem de Mahasi Sayadaw, abade do Mosteiro Bodhipala na Suíça e atualmente vivendo na Itália. Estará em fevereiro de 2012 no Brasil a convite da Comunidade Nalanda.


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1 COMMENT

  1. texto muito bom, faz com que fique mais atento ao dia a dia. alias, quais práticas recomendadas para vivermos melhor e mais atento no dia a dia?

    acho que um dos Kamma que existem é exatamente está desligado. ou seja, as pessoas vivem tão distraídas em seus mundos particulares e isso pode criar essa ponte de egoismo.

    o reflexo disso é pagarmos caro por tecnologia que isola um do outro cada vez mais.

    Como reverter isso de maneira prática?

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