Por Maggacitta
Os primeiros anos de sua vida e sua ordenação monástica
Anuruddha, como Ānanda, era um nobre do clã dos sakyas e também era primo de Buddha. Anuruddha e Ānanda foram gerados pelo mesmo pai, o príncipe sakya Amitodana, ainda que não tivessem a mesma mãe, já que os textos não se referem a eles com irmãos e dão a entender que cresceram em lares diferentes. O irmão autêntico de Anuruddha era Mahānama, o sakya, e tinha também uma irmã chamada Rohini.
Como qualquer varão pertencente a um clã aristocrático, Anuruddha cresceu rodeado de todo tipo de luxos. Passou os primeiros anos de sua vida na gozosa busca de prazeres, prestando pouca atenção ao significado e propósito da existência.
O momento decisivo de sua vida aconteceu pouco depois de seu primo, o Buddha, visitar Kapilavatthu. Mediante seu exemplo e ensinamentos, o Buddha havia animado a muitos de seus familiares a abraçar uma vida sem lar. Um dia, o irmão de Anuruddha, Mahānama, refletia sobre o fato de que nenhum membro da sua própria família havia feito tal coisa. Então, se aproximou de Anuruddha e comunicou seus pensamentos. Mas Anuruddha contestou: “Mas eu fui delicadamente nutrido; não sou capaz de renunciar à vida de família para adotar uma sem lar. Renuncie você”.
Mahānama, então, explicou-lhe detalhadamente as responsabilidades que teria que aceitar se escolhesse a vida de um chefe de família: “Primeiro deverá arar os campos para depois semeá-los, logo terá que levar água até eles, que mais tarde há de extraí-los, e também há que desarraigar ervas daninhas. Há que colher a colheita quando madure, trilhá-la, separar a palha, etc… E o mesmo se há de fazer no ano seguinte, e no outro”.
Anuruddha perguntou: “E quando o trabalho termina? Quando poderá ser visto o fim da tarefa? Quando poderemos nos divertir, livres de preocupações, equipados com os cinco elementos do prazer sensorial?
Seu irmão respondeu claramente: “A tarefa não tem fim, meu querido Anuruddha. Jamais se avistará o final da mesma. Inclusive quando nossos pais e nossos avós falecerem, não se pode parar o trabalho”.
Quando seu irmão parou de falar, Anuruddha já estava decidido. O pensamento do ciclo interminável de esforço e de trabalho duro, e do ciclo ainda mais vicioso do renascimento, despertou no jovem um sentimento de urgência. Viu a si mesmo obrigado a lutar incessantemente em cada momento de sua vida, para depois morrer e nascer em algum outro lugar, uma e outra vez em um ciclo interminável. Frente a essa ideia, sua vida presente pareceu insípida e carente de sentido e a única alternativa promissora era seguir seu irmão abraçando a vida sem lar e esforçando-se para cortar o repetitivo ciclo da impermanência.
O exemplo de Anuruddha induziu também a outros príncipes a seguir o precursor, o Buddha, unindo-se à fraternidade dos monges. Assim, quando chegou o dia marcado, seis príncipes sakyas junto com Upali, o barbeiro da corte, se colocaram a caminho deixando para trás seus lares. Os sakyas que integravam o grupo eram Bhaddiya, Anuruddha, Ānanda, Bhagu, Kimbila e Devadatta.
Quando chegaram diante do Mestre pediram a ordenação, acrescentando: “Senhor, nós, os sakyas, somos gente orgulhosa. Upali, este barbeiro, nos serviu durante muitos anos. Por favor, ordene primeiro a Upali. Sendo então nosso superior, deveremos saudá-lo e tratá-lo como corresponde a sua posição e nosso orgulho será humilhado”. O Buddha fez tal como lhe pediram e os sete homens receberam a ordenação, sendo Upali o primeiro a recebê-la.
O Caminho Espiritual de Anuruddha
O caminho espiritual de Anuruddha está marcado por duas características importantes: o olho divino e seu cultivo dos quatro fundamentos da vigilância (satipatthāna). O olho divino é a capacidade de ver além do alcance do olho físico, detrás das barreiras e em diferentes dimensões da existência. Anuruddha podia atingir até um milhão de universos. O olho divino se desenvolve mediante o poder da meditação, não é um novo órgão sensorial e sim um tipo de conhecimento, um conhecimento que exercita, de qualquer maneira, a função ocular.
O olho divino plenamente desenvolvido é capaz de iluminar todo o panorama da existência dos seres sensíveis – estender-se por milhares de universos e abarcar desde os paraísos mais elevados até os infernos mais profundos – revelando também as leis kâmmicas que governam o processo do renascimento. Os discípulos que desenvolveram o olho divino podem perceber regiões de universos sensíveis que escapam a nossos telescópios mais potentes.
A outra faceta principal do caminho espiritual de Anuruddha era a árdua prática de satipatthāna, os quatro fundamentos da vigilância: “Aqui um monge mora contemplando o corpo no corpo… as sensações nas sensações… a mente na mente… os fenômenos mentais nos fenômenos mentais, ativo, compreendendo claramente e vigilante, havendo eliminado a cobiça e o pesar com respeito ao mundo”.
Anuruddha dizia também que satipatthāna havia permitido a ele ganhar um controle perfeito sobre as reações emotivas, o que se chama o “poder dos nobres” (ariyaiddhi), mediante o qual alguém pode contemplar o repulsivo como não repulsivo, o não repulsivo como repulsivo, e perceber ambos com equanimidade. Grifa, além disso, a importância dessa prática dizendo que quem descuida dos quatro fundamentos da vigilância, descuida do caminho nobre que conduz à extinção do sofrimento, enquanto que quem o pratica haverá empreendido o caminho nobre que conduz à extinção do sofrimento.
Em uma ocasião em que Anuruddha ficou doente, deixou atônitos os monges com sua equanimidade para suportar a dor. Depois de perguntarem como era capaz de suportar tão serenamente a dor, Anuruddha respondeu que sua serenidade era devida à prática da vigilância quádrupla. Em outra ocasião, Sāriputta visitou Anuruddha ao entardecer e lhe perguntou o que ele estava praticando para que seu rosto irradiasse sempre tanta felicidade e serenidade. Anuruddha disse, de novo, que dedicava seu tempo a praticar assiduamente os quatro fundamentos da vigilância e que era esse o modo no qual viviam e praticavam os Arahants.
Em certa ocasião em que Anuruddha realizava suas práticas meditativas pensou, em sua contemplação, que havia sete pensamentos dignos de serem apreciados:
“Este Dhamma é para quem tenha desejos escassos, não para quem tenha muitos. Este Dhamma é para quem permaneça satisfeito, não para quem esteja descontente. Este Dhamma é para quem prefira a solidão, não para quem seja gregário. Este Dhamma é para quem tenha energia, não para o preguiçoso. Este Dhamma é para quem permaneça atento, não para o confuso. Este Dhamma é para quem esteja concentrado, não para quem esteja disperso. Este Dhamma é para quem seja sábio, não para o ignorante”.
Quando o Buddha percebeu com sua mente os pensamentos de Anuruddhaa, apareceu perante ele em um corpo mental e o aplaudiu: “Bom, Anuruddha, muito bem! Analisou corretamente sete pensamentos de um grande homem. Agora pode considerar o oitavo: ‘Este Dhamma é para quem se curva perante a não abundância, para quem se deleita com a não abundância, não para quem se curva diante da dispersão mundana e se deleita com ela’”.
O Buddha lhe disse, então, que, se ele contemplasse esses oito pensamentos, seria capaz de alcançar, à sua escolha, as quatro abstrações meditativas. Depois desse feito ele já não se veria afetado pelas condições mundanas. Essa vida tão simples faria que sua mente se sentisse feliz e imperturbável e, por consequência, seria favorável para alcançar o Nibbāna.
Durante essa mesma estação de chuvas, alcançou a libertação mental de todos os vícios. Na hora de sua vitória, o Venerável Anuruddha pronunciou os seguintes versos nos quais expressa gratidão ao Mestre:
O mestre que no mundo não há igual,
Depois de compreender a intenção de minha mente,
Veio a mim mediante seu poder psíquico
No veículo de um corpo mental.
Quando surgiu em mim a intenção,
Me concedeu mais um ensinamento.
O Buddha, que se deleita com a não abundância,
Me deu instruções sobre a não abundância.
Havendo compreendido seu Dhamma,
Vivi deleitando-me em seu Ensinamento.
Alcancei os três conhecimentos,
Levei a cabo os Ensinamentos do Buddha.
A vida na Sangha
Do Cânone Pāli se deduz que Anuruddha, diferente de outros monges como Sāriputta, Mahāmoggallāna e Ānanda, preferia uma vida de silenciosa reclusão a uma de envolvimento ativo nos assuntos da Sangha. Da mesma maneira que o Venerável Mahākassapa, tinha uma forte inclinação pelas práticas ascéticas. De suas práticas ascéticas, cabe mencionar a prática daquele que se senta, que é o voto de não se deitar, quer dizer, dormir enquanto se permanece sentado em meditação. Talvez, devido ao poder de sua abstração meditativa, fosse capaz de renovar sua mente de tal modo que dormir havia se tornado desnecessário. Em um verso, ele mesmo, Anuruddha, dá a entender que não dormiu durante vinte e cinco anos.
Ainda que o Venerável Anuruddha preferisse a solidão a companhia, não era totalmente um recluso. O Buddha afirma em um sutta que o ancião tinha alguns discípulos a quem treinava no desenvolvimento do olho divino. Também mantinha conversas sobre o Dhamma com outros monges e com os seguidores laicos eruditos.
O relato mais conhecido sobre as amizades de Anuruddha é o que traz o Culāgosinga Sutta. Uma vez, quando Anuruddha morava no Bosque de Gosinga com seus amigos Nandiya e Kimbila, o Buddha os visitou. Depois de manifestar seus respeitos aos Mestre, o Bem-Aventurado perguntou a Anuruddha se ele e seus companheiros viviam em harmonia. Anuruddha respondeu: “Sem dúvida, Senhor, vivemos em união, com mútua estima, misturando-nos como o leite e a água, vendo-nos uns aos outros com olhos bondosos”.
O Buddha perguntou em seguida como conseguiam manter uma harmonia tão absoluta. A resposta de Anuruddha foi uma lição perfeita sobre a difícil arte das relações interpessoais: “Consigo pensando: ‘Quão bendito e quão afortunado sou de estar vivendo na vida santa com semelhantes companheiros! Em todas as minhas ações de corpo, palavra e pensamento, mantenho o amor afetuoso por eles e considero: “Permita que deixe de lado meus próprios desejos para fazer o que estes Veneráveis seres desejem fazer”. Desse modo ainda que sejamos diferentes em corpo, somos um na mente’”.
O Parinibbāna de Buddha e o que Aconteceu Depois
Segundo referências do Mahāparinibbāna Sutta, o Venerável Anuruddha esteve presente no momento da morte de Buddha e desempenhou uma função capital nos assuntos da Sangha recentemente órfã.
Quando o Iluminado faleceu, muitos dos monges presentes choravam e se lamentavam pela morte do Mestre. Mas Anuruddha repreendeu-os recordando-os a impermanência: “Já basta, amigos! Não soluceis, não lamenteis! Pois, por acaso Buddha não declarou que em tudo o que é querido e apreciado há de haver mudança, separação e ruptura? Com relação ao que surgiu, tomou existência, que está formado e sujeito à decadência, como pode alguém dizer: ‘Que não caia em dissolução!’”.
Anuruddha e Ānanda passaram o resto da noite ao lado do corpo do Mestre. Pela manhã, Anuruddha pediu a Ānanda que anunciasse a morte do Bem-Aventurado a todos que viviam no povo vizinho de Kusinara. Eles acudiram imediatamente e prepararam a pira funerária.
Três meses depois do Buddha falecer, organizou-se o Primeiro Concílio com vistas a enumerar e codificar os ensinamentos. Nesse concílio participariam quinhentos Arahants. Ānanda, devido a sua prodigiosa memória e a sua convivência direta como assistente do Mestre durante vinte e cinco anos, tinha que participar de tal concílio, mas havia um problema: Ānanda não havia alcançado o estado de Arahant que lhe permitiria participar do concílio.
Por consequência, os monges anciãos encabeçados por Anuruddha, o incentivaram a fazer um esforço concentrado e correr atrás dos últimos entraves até conseguir a libertação final. Em pouco tempo, Ānanda pôde cumprir com seu propósito, e sendo já um Arahant, pôde participar do concílio, para o bem da Sangha e para o bem de todos os que buscam um caminho de libertação.
A libertação de Ānanda, incentivado pelo seu primo Anuruddha, é também uma benção para nós, inclusive em nossos dias. Temos uma grande dívida de gratidão com esses grandes seres.
Em relação à morte do Venerável Anuruddha, não se conhece mais que a serena estrofe final das vinte que se encontram no Theragathā:
Em Veluva, o povo dos Vajjia,
Sob os bambuzais,
Livre de vícios, passarei ao Nibbāna
Quando minha força vital estiver esgotada.
Traduzido por Pilar Sanches para o Centro de Estudos Nalanda
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