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~ por Ven. Ajahn Payutto ~

4. Não-Eu e Nenhum-Eu

Muitas declarações do Buddha no Sutta-Nipāta descrevem arahants – aqueles que compreenderam o objetivo da vida santa – como seres sem attā e nirattā [64]. Arahants são desprovidos tanto de um ‘self’ quanto de uma ‘ausência de self’. O Mahāniddesa define a palavra attā como “uma crença em um ego” (attadiṭṭhi), ou “uma crença em um ego permanente e eterno” (i. e. uma visão eternalista). [70/29] Define nirattā como uma adesão à visão aniquilacionista. Outra definição de atta é “algo agarrado”, e uma outra de nirattā é “algo para ser abandonado”. Por conseguinte, um arahant não acredita em um self ou na ausência de self (uma aniquilação do self). Um arahant não se apega a nada nem precisa se livrar de qualquer coisa. O Mahāniddesa explica ainda que quem quer que se apegue deve ter algo a renunciar, e quem quer que possua algo para renunciar deve estar apegado. Um arahant transcendeu tanto o apego quanto a renúncia. [65] Essas explicações dadas pelo Buddha e pelos comentadores elucidam o significado de anattā.

Em geral, as pessoas acreditam firmemente em um eu. Em um nível grosseiro elas veem o corpo como sendo o seu eu, mas, sob inspeção profunda, ao perceber que o corpo não pode ser o eu, visto que a mudança física é bastante óbvia, elas se identificam com a mente ou com qualidades mentais, por exemplo, sentimentos, memória, inteligência e consciência. Na verdade, elas se agarram a um dos cinco agregados como eu ou a uma unidade de corpo e mente, isto é, a todos os cinco agregados. Algumas pessoas são mais sutis, reconhecendo que o corpo e a mente não podem ser o self, mas que um self distinto – um eu regente substancialmente real ou alma –  habita dentro ou além do corpo e da mente.

Alguns fundadores e filósofos incluem um conceito de self em sua busca pela realidade última. Alguns declaram ter atingido ou realizado essa verdade – o Ser Supremo – chamada por vários nomes, por exemplo: Paramātman, Brahmā ou Deus. Muitos desses filósofos e líderes de seita são muito inteligentes e habilidosos, mencionados nas escrituras como “excelentes ascetas e brahmaṇas” ou “filósofos divinos”, e as condições que eles descrevem são extremamente profundas. Mas, enquanto essas condições ainda possuam uma identidade fixa, ou ainda pertençam a um self, elas não são o supremo, a verdade última, já que ainda estão contaminados por apego.

A Verdade Última existe; o Buddha-Dhamma não é uma doutrina niilista. Não se pode realizar essa verdade, no entanto, com o conhecimento obscurecido e distorcido por falsas percepções e com uma mente limitada pelo agarrar-se a essas percepções. A razão pela qual muitos filósofos e religiosos são incapazes de perceber a Verdade Última, embora eles saibam claramente que o self de corpo-mente (cinco agregados) anteriormente apreendido não é real, é porque eles ainda mantêm dois tipos de auto-engano. Estes dois enganos, característicos dos seres não despertos são:[70/30]

1. A auto-identificação: o cultivo de uma autoimagem residual mantida desde o momento em que o corpo é apreendido como um self. Embora essa imagem torne-se refinada, ela permanece essencialmente a mesma, ou do mesmo escopo, e é um resultado de má compreensão. Quando tais filósofos e buscadores encontram e se identificam com um aspecto da realidade, eles fixam essa imagem ou conceito sobre tal condição, distorcendo a verdade. O que quer que seja conhecido por eles não é, portanto, a pura, não adulterada Verdade.

2. Apego (upādāna): Uma vez que acreditam em uma idéia rudimentar de self, tais pessoas têm uma tendência para o apego. Além de sustentar uma autoimagem equivocada, relacionam-se com os fenômenos tendo apego, o que os impede de perceber a verdadeira natureza das coisas.

Em resumo, esses buscadores espirituais e filósofos ainda não estão liberados. Eles não estão liberados de equívocos nem do apego. Esses dois enganos são, de fato, inseparáveis: combinando-os, pode-se dizer que esses indivíduos erroneamente assumem uma idéia do self, remanescente de um apego original, e a sobrepõem sobre a realidade ou natureza. Como consequência, permanecem atados. A liberação só é possível quando se para de insuflar as coisas com uma identidade fixa; assim, fenômenos deixam de existir como entidades substanciais e percebe-se a Verdade Suprema. O Buddhadhamma ensina que o self é uma suposição, uma realidade convencional. A Verdade Última é diametralmente oposta à verdade convencional. O self aplica-se às convenções; quando transcende as convenções, a pessoa atinge a Verdade Suprema, que não pode ser o self. Falando de forma simples, a verdade não é self, se ainda existe um self, não é a Verdade.

Os principais fatores para a ilusão são o apego e as noções fixas de self. Como o self não existe verdadeiramente, exceto em um nível convencional, é simplesmente uma crença. O self é apenas uma idéia; não é uma verdadeira entidade imutável. Attā acima citado do Sutta-Nipāta pode ser definido de duas maneiras: em primeiro lugar como ‘eu’ ou ‘crença no eu’, e em segundo como ‘algo apreendido’. Além disso, a passagem menciona o par attā e nirattā, e explica que para um arahant não há attā nem nirattā. Nirattā também pode ser definido de duas maneiras: em primeiro lugar como ‘(apego a) não-eu’, ou seja, uma visão aniquilacionista, e em segundo lugar como ‘algo a ser abandonado’. Quando se abandona a adesão às convenções errôneas e não mais se ata a um self, o assunto está encerrado. Alcança-se a liberdade e a quietude; aderir a uma idéia de não-eu torna-se desnecessário.[70/31] O abandono do apego é o fim: nada mais é agarrado. Com nada mais sendo agarrado não há nada a ser abandonado, como confirmado pelas palavras do Buddha:

Aquilo a que havia adesão não existe; onde há então alguma coisa a renunciar? (natthi atta kuto nirattam va) [66]

Mesmo a expressão ‘apego a um eu’ está, estritamente falando, incorreta. Uma vez que o self é só uma realidade convencional, a expressão apropriada é ‘apego a uma ideia do self’. Nossa tarefa é deixar de nos apegar à crença ou noção de self. O self não precisa ser abandonado, porque não existe ‘self’ que possa ser possuído. Então, como pode ser abandonado? Acreditar em um self é formar um conceito e sobrepô-lo à realidade. O ensinamento estimula-nos a abandonar tais formações como imagens fixas. Se falharmos em fazer isso, embora tenhamos abandonado certas condições, fixaremos um conceito ou ‘depósito’ do self como um algo mais, obscurecendo ou distorcendo sua verdadeira natureza. Portanto, as tarefas necessárias são eliminar o apego às noções anteriores de self, se abster de fixar-se a qualquer outra coisa como um eu e evitar o apego ao não-eu (nirattā). Então, só a Verdade permanece, o que não diz respeito nem depende de crenças pessoais ou apegos.

Uma vez que o self é uma ideia e uma entidade convencional estabelecida para facilitar a comunicação, se o self é compreendido plenamente e faz-se uso dele sem se apegar, então ele não é destrutivo. Da mesma forma, quando alguém está atado a uma imagem do self, os ensinamentos insistem no abandono. Sem apego, o assunto está encerrado; não é necessário identificar-se com qualquer outra coisa. Não é necessário fixar-se a qualquer coisa como self, ou procurar um self em outro lugar. Portanto, o Buddha ensinou a abandonar o apego somente ao self que já tenha sido apegado, o que significa deixar a adesão aos cinco agregados. Uma vez que o self não esteja mais atado, a questão do self está acabada. Depois disso, é uma questão de alcançar a Verdade que efetivamente existe. Um self, no entanto, não tem qualquer influência sobre a Verdade e, portanto, a Verdade é descrita como anattā: sem-eu. Aqueles que realizam a Verdade são livres de qualquer crença em um self; eles não mais precisam acreditar num eu ou no não-eu. Conhecendo o não-existente como não-existente, a questão está terminada. Daí em diante, há o alcance da Verdade, o Incondicionado, para o qual um self já não tem qualquer significado.

Uma consequência nociva do apego a um eu, ou a crença em uma concepção do eu é que se conclui que o self é o agente, com o poder de controlar os acontecimentos. Quando a noção do eu torna-se mais sutil, um self soberano universal é concebido, como o Criador de todas as coisas. Esse Criador é imaginado como um interventor no processo causal, a despeito de ser desnecessária tal intervenção. Ele é desnecessário porque a natureza existe de forma autônoma, a dinâmica condicionante inter-relacionada funciona de forma independente, sem a necessidade de um Criador. Portanto, ao invés de dizer que um Criador, um Deus, deve existir como uma condição prévia para a gênese de todas as coisas, deve ser afirmado que os fenômenos naturais são, eles próprios, a realidade primordial (visto que os fenômenos naturais são mutuamente criados em contínuo com a causalidade; resumidamente falando, eles criam uns aos outros.) [70/32] Não é preciso, então, se incomodar com questões sobre o passado, tais como: ‘O que existia antes de Deus?’ ‘Quem criou Deus?’ ou ‘De onde veio Deus?’

Não é nem necessário nem correto dizer que os fenômenos naturais, ou a dinâmica causal, exigem um Deus criador para existir. Se Deus fosse verdadeiramente o criador o resultado seria dois sistemas que se sobrepõem: Deus e a natureza. Ao curso da natureza seria necessário aguardar o ato criativo de Deus. A dinâmica natural sujeita a desígnios divinos seria imprópria, no entanto, uma vez que as coisas devem suceder de acordo com causas e condições dentro de seu próprio sistema. Atos de Deus iriam interferir e obstruir o fluxo causal contínuo dos fenômenos. Além disso, como o temperamento de Deus pode variar, as coisas seriam afetadas em conformidade; em um momento, Deus quereria que fossem para um lado e, no momento seguinte, para outro. Como consequência, a natureza teria menos oportunidade de seguir com a causalidade, terminando em uma grande confusão e caos. Essa não é, no entanto, a maneira como as coisas realmente são; a dinâmica natural ocorre em conformidade com suas condições.

Algumas pessoas podem dizer que a natureza segue leis, e que Deus criou ou estabeleceu essas leis. Nesse caso, as leis devem ser incertas, passíveis de mudança a qualquer momento e indignas de confiança, porque o ordenador das leis está além das leis; tal Ser pode modificar as leis como desejado. Essas leis, no entanto, invariavelmente se mantiveram constantes. A existência de um Criador das leis é desnecessária e improvável, porque a natureza deve proceder de maneira específica. As condições naturais concordam com as causas e são “o que são” (tathatā): elas não são e não poderiam ser de outra forma (avitthatā). As próprias leis são apenas descrições que nós formulamos ao observar as ocorrências naturais. Além disso, a ausência de um Deus criador e a autonomia da dinâmica causal também resolvem em outra questão: a Realidade Última, ou o Incondicionado, é absoluta; não interfere como o Criador dos fenômenos ou  com os processos condicionados. (Desta perspectiva, nibbāna não pode ser Deus, não importa o quanto algumas pessoas tentem igualá-los, a menos que se esteja disposto a redefinir o significado de “Deus”). [67] [70/33]

Em circunstâncias normais, é natural que as pessoas acreditem num self e num Criador do mundo, porque as coisas aparentemente requerem um agente criador para vir a ser. Vendo por meio dessa falsa crença, a causalidade subjacente fica difícil. Portanto, em tempos antigos as pessoas acreditavam que os deuses eram as únicas causas por trás de relâmpagos, ventos, inundações e terremotos. Não é de estranhar então que os buscadores religiosos e filósofos acreditassem em uma alma e um Criador. Pessoas inteligentes têm criado conceitos mais refinados, conceitos abrangentes, mas, essencialmente, foram pegas no mesmo ponto.

A libertação da identificação com o self obtida pelo Buddha (apesar da probabilidade de que ele poderia ter ficado enredado em noções mais refinadas do self), Sua revelação de que o mundo funciona sem um Criador, e sua descoberta do não-eu e do Incondicionado não-criador contam como um enorme avanço na sabedoria humana. Essa percepção é o escape da armadilha certeira que tem aprisionado o ser humano. Apesar do entendimento das características de impermanência e dukkha, os grandes filósofos antes do Buddha foram obstruídos pela crença em um eu ou alma. A característica de não-eu é, portanto, extremamente difícil de ver. O Buddha inclinou-se a usar as características da impermanência e dukkha para indicar e explicar anattā. Os comentadores reconheceram a necessidade de explicar o não-eu através da impermanência e dukkha, e valorizaram esse importante avanço na sabedoria como uma revelação não encontrada antes ou fora do Buddhismo, como fica ilustrado nas seguintes passagens: [68]

O Sammāsambuddha explicou a característica de não-eu  pela via da impermanência, pela via de dukkha, ou através de ambas. Neste sutta o Buddha explica a característica de não-eu pela via da impermanência assim: ‘Bhikkhus, se alguém dissesse, ‘o olho [ouvido, etc.] é o eu, isso seria inadequado (porque) o surgimento e o cessar do olho é aparente; vendo tal surgir e cessar esta pessoa deveria concluir: ‘Meu eu surge e cessa’. Por esta razão, dizer: “O olho é o eu” é inadequado. Assim, o olho é não-eu”. [69]

O Buddha Perfeitamente Iluminado explicou a característica de não-eu neste sutta referindo-se a dukkha assim: ‘Bhikkhus, o corpo não é o eu. Se este corpo fosse o eu, então não estaria sujeito a doença, [i.e. opressão – dukkha], e seria possível obter do corpo: ‘Que meu corpo seja assim, que o meu corpo não seja assim’. [70/34] Mas porque o corpo é não-eu, ele é sujeito à doença, e não é possível obter do corpo: ‘Que meu corpo seja assim, que meu corpo não seja assim. [70]

O Buddha Perfeitamente Iluminado explicou as características do não-eu nos suttas referindo-se tanto a impermanência quanto a dukkha, por exemplo: ‘Bhikkhus, a forma material é impermanente. O que quer que seja impermanente é dukkha. Tudo o que é dukkha é não-eu. O que quer que seja não-eu deve ser visto com perfeita sabedoria, como realmente é, assim: ‘Isto não é meu’,’eu não sou isto’,’este não é o meu eu’. [71]

Por que o Buddha explica dessa forma? Porque a impermanência e dukkha são manifestos [facilmente observáveis]. De fato, quando um pote, tigela ou outro objeto cai da mão e se quebra, as pessoas exclamam: ‘Oh, quão efêmero!’ Impermanência é, portanto, descrita como evidente. Quando um furúnculo ou calombo se forma no corpo, ou um espinho fere uma pessoa, ela exclama: ‘Oh, quão doloroso!’ Dukkha é, assim, descrito como evidente. Anattā, no entanto, não é aparente, não é óbvio; é difícil de entender, difícil de explicar e difícil de descrever.

Se Tathāgatas surgem ou não, as características da impermanência e dukkha são aparentes, mas a característica de não-eu permanece oculta a menos que um Buddha surja; é evidente apenas durante o tempo de um Buddha. Na verdade, os ascetas religiosos e andarilhos com grandes poderes psíquicos, como o mestre Sarabhaṅga, foram capazes de descrever a impermanência e dukkha, mas não o foram de descrever o não-eu. Se Sarabhaṅga, por exemplo, tivesse sido capaz de descrever o não-eu à sua congregada comunidade, aquela assembleia poderia ter realizado o caminho e o fruto. Na verdade, revelar a característica de não-eu não está dentro da capacidade de qualquer outra pessoa que não um Buddha onisciente. Neste sentido, a característica de não-eu não é aparente.

Traduzido por Jorge Furtado para o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda
em acordo com Buddhadhamma Foundation
Para Distribuição Gratuita
© 2011 Edições Nalanda


Nota: “Escritos sobre o Buddha Dhamma” consiste de um conjunto de escritos de um dos mais respeitados monges da Thailândia contemporânea, Venerável Ajahn Payutto.


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2 COMMENTS

  1. Excelente! Grato pela tradução e divulgação. A propósito, a numeração entre colchetes a quê se refere?

  2. Obrigado pelo apoio, Rodrigo. A numeração se refere a notas que serão subsequentemente colocadas após o término dessa seção.

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