Os Dois Principais Discípulos

  1. Os dois indivíduos que se tornaram discípulos-chefes de Buddha nasceram ambos no mesmo dia em cidades adjacentes, ao norte de Rājagaha. O primeiro foi chamado Moggallāna, enquanto o segundo foi chamado Upatissa, embora ele fosse sempre chamado Sāriputta, filho de Sāri, sendo Sāri o nome de sua mãe. Os dois meninos cresceram juntos e se tornaram amigos íntimos.

Quando eles se tornaram jovens, num certo dia eles foram até Rājagaha a fim de participar de um festival, e quando se sentaram assistindo a uma peça teatral ambos foram surpreendidos por um forte sentido da impermanência da vida, e como resultado tomaram ambos a decisão de renunciar o mundo. Um dos mestres religiosos mais conhecidos da época era Sanjaya Belatthiputta, e os dois jovens se tornaram seus discípulos. Sanjaya era famoso por sua evasão em responder questionamentos e seus rivais [1] o refereciavam como uma enguia escorregadia (amaravikkhepikas).

  1. Moggallāna e Sāriputta ficaram com Sanjaya durante alguns anos levando a vida de ascetas errantes, no entanto eles não estavam realmente satisfeitos com o que estavam aprendendo com o seu professor. Depois de um tempo, eles decidiram se separar e cada um seguir seu próprio caminho em busca da verdade, prometendo que o primeiro a encontrá-la deveria contar ao outro a seu respeito. Um dia, enquanto Sāriputta caminhava por Rājagaha, ele viu um monge e ficou profundamente impressionado com a graça e equilíbrio [50] com que ele se movia e com a expressão calma e feliz no rosto. O monge era Assaji, um dos discípulos do Buddha. Sāriputta lhe perguntou:

“Quem é seu professor?” E Assaji respondeu: “Amigo, há um grande asceta, um filho dos sakyas, que saiu do clã sakya. É por causa desse Senhor que eu saí. Esse Senhor é meu professor, eu aceito o Dhamma desse Senhor”.

“Que doutrina seu professor ensina? O que ele aponta?” “Amigo, eu sou um iniciante, eu acabei de abandonar a vida no lar, eu sou novo neste Dhamma e disciplina. Eu não posso ensinar o Dhamma na íntegra, mas vou lhe dizer a sua essência”.

“Assim seja, sua reverência, me diga pouco ou me diga muito, mas de qualquer forma me dê sua essência, eu só quero a essência. Não há necessidade de uma grande elaboração”.

Então Assaji disse: “Essas coisas que procedem de uma causa, de tais coisas o Tathāgata revelou a causa. E o que é a sua cessação, o grande recluso também tem uma doutrina”.

  1. Quando Sāriputta ouviu isso, ele se tornou um Entrante-na-Correnteza, e partiu imediatamente para encontrar seu amigo Moggallāna. Quando os dois se encontraram, Moggallāna pode ver imediatamente que algo maravilhoso havia acontecido com seu amigo. “Amigo, suas faculdades são bastante puras e sua tez é clara e brilhante. Pode ser que você tenha atingido o Imortal?” “Sim, amigo, eu alcancei o Immortal”, Sāriputta respondeu. Ele disse a seu amigo como isso aconteceu e os dois decidiram procurar o Buddha para que eles pudessem ouvir mais sobre o Dhamma de seus próprios lábios. Mas Moggallāna, cuja compaixão muitas vezes o levou a pensar no bem-estar dos outros antes dele mesmo, sugeriu que primeiro eles fossem até Sanjaya e seus discípulos dizer-lhes o que tinham descoberto, certo que gostariam de receber a notícia. Mas, quando eles disseram a Sanjaya que tinham a intenção de se tornarem discípulos do Buddha, ele se mostrou longe de ficar feliz e tentou fazê-los mudar de ideia. Na verdade, tão preocupado ficou com a perspectiva de perder dois bem conhecidos discípulos para alguém que ele via como um rival, que até ofereceu para que eles se tornassem também professores, se ficassem com ele. Sāriputta e Moggallāna recusaram a oferta e, juntamente com quase todos os duzentos e cinquenta discípulos de Sanjaya, partiram para se encontrar com o Buddha. Assim, quando o Buddha viu os dois jovens ascetas vindo à frente de seus seguidores, ele sabia que se tornariam seus discípulos mais capazes e confiáveis. Moggallāna se iluminou sete dias após a sua ordenação, assim como aconteceu com Sariputta duas semanas depois.
  2. As habilidades e disposições de Sāriputta e Moggallāna eram tais que eles desenvolveram faculdades muito diferentes. De todos os discípulos de Buddha, Sāriputta era o mais capaz de entender e explicar o Dhamma, e desse modo era superado apenas pelo próprio Buddha. Uma vez o Buddha [52] disse a ele: “Você é sábio, Sāriputta, grande e vasta é sua sabedoria, viva e rápida é sua sabedoria, aguda e analítica é sua sabedoria. Assim como o filho mais velho de um monarca universal governa corretamente como seu pai o fizera, do mesmo modo você gira a roda do Dhamma como eu fiz”.

Tal era a consideração do Buddha por Sāriputta que lhe foi dado o título de General do Dhamma (Dhammasena-pati). Em um de seus discursos, Sāriputta falou sobre as qualidades necessárias para ensinar o Dhamma e podemos assumir seguramente que ele enfatizou essas mesmas qualidades quando estava pregando.

“Quando alguém que prega deseja ensinar a outro, que ele estabeleça bem cinco coisas e então ensine. Quais cinco? Deixe-o pensar: “Falarei no momento certo, não no momento errado. Falarei sobre o que é, não sobre o que não é. Falarei com gentileza, não com dureza. Falarei sobre o objetivo, não sobre o que não é o objetivo. Falarei com a mente cheia de amor, não com a mente cheia de má vontade. Quando alguém que ensina deseja ensinar outrem, que defina bem [4] essas cinco coisas”.

  1. Sendo Sāriputta um entusiástico e efetivo professor do Dhamma, ele também sabia que embora as pessoas pudessem ser ajudadas enquanto eram ensinadas sobre o Dhamma, algumas vezes elas precisavam de ajuda prática e material também. E ele estava sempre pronto para ajudar nisso. Certa vez, Yasodhara, [53], ficou gripada e o filho dela, Rāhula, tentou encontrar remédios para ela. Ele consultou Sāriputta, que tinha experiência em cuidar dos doentes, e sabia exatamente qual o melhor remédio. Juntos, eles administraram o remédio em Yasodhara que logo se recuperou. Ele sempre se dispunha a visitar os doentes e lhes oferecer alento e ajuda, mas também tinha especial consideração para com os pobres e solitários que ele costumava ajudar e favorecer em relação aos abastados e influentes. Em uma ocasião, muitas pessoas foram ao mosteiro onde o Buddha estava hospedado para convidar os monges para fazer uma refeição em sua casa. As pessoas preferiam convidar os monges mais renomados e esses monges preferiam ir à casa dos mais abastados, sabendo que lá eles teriam a melhor comida. Todos os monges, com exceto Sāriputta, já tinham aceitado algum convite quando uma mulher paupérrima chegou perguntando se algum monge gostaria de ir a sua casa. O atendente do monastério a informou de que todos os monges, exceto Sāriputta, estavam fora. Pensando que um monge tão eminente não aceitaria uma humilde refeição oferecida por ela, ficou muito decepcionada. Mas quando o atendente informou Sāriputta sobre a mulher pobre, ele concordou alegremente em ir à sua casa, para o deleite dela. Quando o rei Pasenadi ouviu que Sāriputta estaria comendo na casa de uma mulher muito pobre, ele lhe enviou uma grande quantidade de dinheiro, mais do que suficiente para fornecer a Sāriputta uma refeição, o suficiente para que, com a sobra, ela pudesse viver confortavelmente para o resto de sua vida.
  2. Depois de Sāriputta, o Buddha considerava Moggallāna o discípulo mais sábio e o mais altamente desenvolvido.

De acordo com a tradição, ele tinha uma compleição muito escura, tão escura como uma nuvem de chuva. A faculdade mais desenvolvida  de Moggallāna não era a sabedoria, mas poderes psíquicos (iddhi). Quando, como resultado da meditação, a mente está “concentrada, purificada, limpa, sem mancha, livre de impurezas, maleável, trabalhável e firme”, ela algumas vezes se torna capaz de habilidades extraordinárias. Alguns desses poderes psíquicos que os monges buddhistas ocasionalmente desenvolvem são a habilidade de mudar sua aparência, ser capaz de sentir o que está acontecendo a grande distância, ser capaz de ler a mente de outras pessoas e ser capaz de sair [7] do corpo.

  1. O Buddha sabia que a exibição de poderes psíquicos poderia ter um grande efeito sobre as pessoas, nem sempre positiva. Aqueles que exibiam tais poderes poderiam facilmente ser contaminados pela adulação que receberiam, enquanto aqueles que viam tais poderes exibidos muitas vezes poderiam dedicar devoção impensada a quem os detinha. Ele também criticou o uso de demonstrações psíquicas para converter as pessoas.

Uma vez, quando o Buddha estava hospedado em Nalanda, um dos seus discípulos disse para ele:  “Senhor, Nalanda é rica, próspera, repleta, cheia de pessoas que têm fé no senhor. Seria bom se o senhor conseguisse um monge para realizar façanhas e milagres extraordinários. Deste modo Nalanda [8] viria a ter ainda mais fé”. O Buddha recusou esse pedido, porque ele queria que as pessoas seguissem [55] o Dhamma a partir do entendimento, não porque eles teriam ficado impressionados por milagres ou façanhas psíquicas.

  1. Uma vez, um rico comerciante colocou uma tigela de madeira de sândalo, no topo de uma longa vara de bambu, a qual ele colocou no mercado em Rājagaha. Então ele deixou ser sabido que qualquer monge que pudesse subir pelo ar e retirar a tigela, poderia tê-la. Pouco tempo depois, Moggallāna e Pindola Bharadvaja foram até Rājagaha, e quando o comerciante os viu, disse a eles: “Ambos têm poderes psíquicos. Se vocês forem buscar a tigela, ela será sua”. Então Pindola subiu no ar e trouxe a tigela para baixo, para imensa admiração da grande multidão que se reunira para assistir. Em seguida, o comerciante convidou Pindola para sua casa e encheu a tigela de sândalo com alimentos caros. Depois disso, por todos os lugares onde Pindola fosse, uma multidão de pessoas ruidosas e excitadas o seguia. Quando o Buddha ouviu falar sobre isso, chamou Pindola e repreendeu-o:

“Não é justo, não é apropriado, não é certo, não é digno de um monge, não é admissível, não deve ser feito. Como você poderia, por causa de uma tigela miserável de madeira, exibir uma das condições de uma pessoa desenvolvida para estes chefes de família. É como uma mulher que exibe sua roupa de baixo por causa de algumas miseráveis [9] moedas”.

Como resultado deste incidente, o Buddha criou uma regra condenando o uso desnecessário dos poderes psíquicos dos monges. Contudo, ele compreendia que o uso de poderes psíquicos poderia ser bem utilizado. Em determinado momento, alguns ladrões atacaram uma casa e sequestraram duas crianças. Quando o monge Pilindavaccha ouviu sobre o fato, ele usou seus poderes para trazer as crianças de volta. Quando os outros monges acusaram-no de quebrar as regras, o Buddha declarou sua inocência porque ele [10] havia usado seus poderes por compaixão.

  1. Do mesmo modo, Moggallāna normalmente usava seus poderes psíquicos apenas para ajudar as pessoas. Uma vez, quando estava com o Buddha no piso superior da residência de Migaramata, um grupo de monges do piso abaixo estava conversando e fazendo muito barulho. O Buddha os descreveu como sendo “frívolos, cabeças-vazias, agitados, com fala inútil e desagradável, sem concentração, inconstantes, desarrumados, com mentes esvoaçantes e sentidos descontrolados” e pediu a Moggallāna dar a eles “um bom sacolejo””. Assim, usando seu dedão do pé, Moggallāna fez a casa toda, tão grande era, sacudir e tremer. Achando que a casa iria desmoronar e gritando de medo, os monges correram para fora. O Buddha, então, aproximou-se e disse-lhes que, a seu pedido, Moggallāna havia sacudido a casa por meio dos poderes psíquicos que ele tinha desenvolvido com a meditação diligente e que eles, da mesma forma, deveriam ocupar o tempo com a meditação [57], em vez de desperdiçá-lo com conversa vã.

Mas, assim como o Buddha, Moggallāna geralmente ajudava as pessoas ensinando-lhes o Dhamma; e o Tipitaka preserva muitos dos discursos que ele proferiu a monges e monjas, laicos e laicas.

  1. Sāriputta e Moggallāna morreram antes de seu professor, o Buddha. Quando Sāriputta percebeu que seu fim estava próximo, ele se despediu do Buddha e partiu para a aldeia onde nasceu. Apesar de ter um filho tão espiritualmente desenvolvido, a mãe de Sāriputta não tinha fé no Dhamma, e Sāriputta quis recompensar sua mãe por tê-lo criado, ajudando-a a entender os ensinamentos do Buddha. Ele enviou um monge à frente para informar sua mãe que ele estava voltando para casa. Ela ficou encantada, pensando que seu filho tinha finalmente desistido e voltado para a vida leiga. Quando ele chegou e ela percebeu que ele ainda era um monge, ela se trancou no quarto chateada. A saúde de Sāriputta rapidamente começou a se deteriorar e, quando estava deitado em seu quarto, vários devas vieram para lhe prestar seus respeitos. Quando a mãe de Sāriputta viu todos esses seres celestiais, ela começou a perceber quão virtuoso e santo era seu filho, e foi vê-lo enquanto estava morrendo. Sāriputta discutiu o Dhamma com ela, e ela se tornou uma vencedora da corrente. Ele então chamou todos os outros monges que o acompanhavam e perguntou se nos últimos quarenta anos ele os havia ofendido, se eles o perdoariam. Todos lhe asseguraram que não havia nada a perdoar e pouco depois disso, Sāriputta [58] alcançou o Nirvāna final.
  2. Apenas duas semanas depois, Moggallāna morreu. Ele havia afirmado que sabia o destino daqueles morriam e que os ascetas jainistas geralmente renasciam nos reinos inferiores. Moggallāna foi amplamente respeitado, seus poderes psíquicos eram bem conhecidos e as pessoas acreditavam naquilo que ele disse sobre os jainistas. Alarmado com a sua influência em declínio, um grupo de ascetas jainistas sem escrúpulos decidiu matá-lo. Eles contrataram alguns bandidos que cercaram a casa onde Moggallāna estava hospedado, mas quando ele notou a presença dos bandidos, escapou pelo buraco da fechadura. Isso aconteceu em várias ocasiões, até que finalmente os bandidos o prenderam, batendo nele severamente deixando-o como morto. Quase morto, ele cambaleou para onde o Buddha estava para fazer as últimas reverências, e então morreu. A lenda diz que Moggallāna encontrou a morte dessa maneira porque, em uma vida anterior, ele havia assassinado seus pais por instigação de sua esposa, que estava com ciúmes da atenção que ele dava a eles.

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Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
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Para Distribuição Gratuita
© 2017 Edições Nalanda

Nota: Este artigo é parte da série O Buddha & Seus Discípulos que está sendo traduzida e cujas partes serão publicadas aqui no site.


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