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por David R. Loy

~ Num blog buddhista sobre o movimento Occupy Wall Street, Michael Stone cita o filósofo Slavoj Žižek, que falou com os manifestantes de Nova York no Zuccotti Park no dia 9 de outubro:

Eles dizem que somos sonhadores. Os verdadeiros sonhadores são aqueles que pensam que as coisas podem continuar indefinidamente da forma que são. Nós não somos sonhadores. Estamos acordando de um sonho que se transformou em pesadelo. Não estamos destruindo coisa alguma, mas testemunhando como o sistema está se autodestruindo. Todos conhecemos as cenas clássicas de desenhos animados. O gato chega ao precipício, mas continua andando sem perceber que não há nada sob seus pés. Apenas quando olha para baixo ele percebe isso e cai. É isso o que estamos fazendo aqui. Estamos dizendo aos caras lá em Wall Street: ‘Ei, olhe para baixo!’.”

Como Slavoj e Michael enfatizam, estamos começando a acordar daquele sonho. Essa é uma maneira interessante de ilustrar isso porque o Buddha também acordou de um sonho: Buddha significa “o iluminado”. De qual sonho ele acordou? Há relação com o pesadelo do qual estamos acordando agora?

Desde o começo os ocupantes foram criticados por suas demandas serem vagas: embora claramente contra o sistema atual, não estava claro a que eram favoráveis. Desde então, houve mais foco: muitos manifestantes estão pedindo impostos mais altos aos ricos, um imposto “Robin Hood” (Tobin) no comércio e reforma bancária para separar financeiras de bancos de varejo. Essas metas são válidas, mas ainda seria um erro pensar que apenas essas medidas resolverão o problema. Devemos observar o geral, a insatisfação desfocada que tantas pessoas sentem porque isso reflete uma compreensão geral, desfocada de que as raízes da crise são muito profundas e requerem uma transformação mais radical (literalmente, “indo ao cerne”).

Wall Street é a parte mais visível e concentrada de um pesadelo muito mais abrangente: a ilusão coletiva de que nosso sistema econômico atual – globalização, consumismo, capitalismo corporativo – não é apenas o melhor possível, mas o único viável. De acordo com a famosa afirmação de Margaret Thatcher: “Não há alternativa”. Os acontecimentos dos últimos anos minaram a confiança, e os das últimas semanas são uma resposta à percepção generalizada de que nosso sistema econômico é viciado para beneficiar o rico (aquele “1%”) à custa das classes média (que diminui rapidamente) e pobre (que cresce rapidamente). E, claro, à custa de muitos ecossistemas, o que trará enormes consequências à vida de nossos netos e de seus filhos. Nosso despertar é para o fato de que esse sistema injusto está se desfacelando e isso deve acontecer para que surjam melhores alternativas.

Não é apenas o sistema econômico que precisa ser transformado, porque não existe mais separação real entre os sistemas político e econômico. Com a decisão “Citizens United” (Cidadãos Unidos) da Suprema Corte no ano passado – acabando com os limites dos gastos corporativos para influenciar as eleições – o poder corporativo parece que passou a controlar todos os níveis mais altos dos governos estadual e federal, inclusive a presidência. (Obama recebeu mais contribuições para campanha vindas de Wall Street do que qualquer outro presidente desde 1991, o que ajuda a explicar sua decepcionante escolha de conselheiros econômicos.)

Hoje, a elite vai e vem com facilidade – de CEO a um cargo no governo e vice-versa – porque ambos os lados compartilham a mesma visão equivocada do mundo: a solução de todos os problemas está no ilimitado crescimento econômico. Certamente, eles também são os que mais se beneficiam dessa miopia, o que significa que o desafio para o resto de nós é que as pessoas que controlam o sistema político/econômico têm pouquíssima motivação para fazer as fundamentais mudanças necessárias.

Embora os Democratas não sejam tão lunáticos quanto os Republicanos, nesse nível básico não há tanta diferença assim entre eles. Depois de alguns anos no Congresso americano, Dan Hamburg, um político Democrata da Califórnia, concluiu que “o verdadeiro governo do nosso país é econômico, dominado por grandes corporações que cortejam o Estado para atender às suas ordens. Promover um ambiente seguro no qual as corporações e seus investidores possam florescer é o maior objetivo dos dois partidos [políticos]”. Nós ainda temos o melhor Congresso que o dinheiro pode comprar, como percebeu Will Rogers lá nos anos de 1920.

Da perspectiva buddhista, a questão é que esse sistema integrado é incompatível com os ensinamentos buddhistas porque encoraja avareza e ilusão – as causas de nosso dukkha ou sofrimento. No cerne da crise atual estão o papel econômico, político e social das maiores (geralmente transnacionais) corporações, que têm vida própria e seguem sua própria pauta. Apesar de toda a publicidade e da propaganda das relações públicas aos quais somos expostos, seus melhores interesses são bem diferentes do que é melhor para o resto de nós. Algumas vezes, ouvimos sobre “corporações iluminadas”, mas essa metáfora é enganosa – e a diferença entre tal “iluminação” e a iluminação buddhista é educativa

O florescente poder das corporações foi institucionalizado em 1886, quando a Suprema Corte determinou que uma empresa privada é uma “pessoa natural” sob a constituição americana, portanto, com direito a todas as proteções da Bill of Rights (Declaração dos Direitos Humanos dos Cidadãos Americanos), inclusive liberdade de expressão. Ironicamente, isso destaca o problema: como muitas afirmações nos pôsteres do movimento Occupy Wall Street, corporações não são pessoas porque elas são criações sociais. Obviamente, incorporação (do latim corpus, corporis, “corpo”) não significa ganhar um corpo físico. Corporações são ficções legais criadas por determinação do governo, o que significa que são inerentemente indiferentes às responsabilidades que as pessoas vivenciam. Uma corporação não consegue rir nem chorar, tampouco curtir o mundo ou sofrer com ele. Ela é incapaz de se arrepender do que fez (vez ou outra pode até se desculpar, mas só por causa da imagem).

Mais importante, uma corporação não consegue amar. Amar é perceber nossa interconexão com outros e nos preocuparmos com seu bem-estar. Amar não é uma emoção, mas um engajamento com outros que inclui responsabilidade por eles, uma responsabilidade que transcende nosso interesse individual. Corporações não conseguem vivenciar esse amor nem corresponder a ele. Quaisquer CEOs que tentarem subordinar a lucratividade da empresa ao seu amor pelo mundo perderão seu cargo, pois não deixam de ter a responsabilidade principal – ou seja, financeira – para com seus proprietários, os investidores.

Iluminação Buddhista inclui perceber que minha percepção de ser um eu separado do mundo é uma ilusão que causa sofrimento para ambos os lados. Perceber que estou no mundo – que “eu” sou uma das muitas formas de manifestação do mundo – é o lado cognitivo do amor que uma pessoa desperta sente pelo mundo e por suas criaturas. A compreensão (sabedoria) e o amor (compaixão) são dois lados da mesma moeda, por isso os mestres buddhistas frequentemente enfatizam que o verdadeiro despertar é acompanhado por preocupação espontânea por todos os seres vivos.

Corporações são alimentadas e reforçam um traço humano muito diferente. Nossa economia dominada pelas corporações requer ganância em pelo menos duas maneiras: desejo por lucro sem fim é o motor do processo econômico e, para manter o crescimento econômico, os consumidores devem ser condicionados para sempre desejarem mais.

O problema com a ganância piora quando institucionalizado na forma de uma criação legal que se autoprivilegia, independentemente dos valores pessoais e das motivações das pessoas que ela emprega. Considere o mercado de capitais, por exemplo. De um lado, investidores querem retornos maiores na forma de dividendos e preços mais altos das ações. Do outro lado, essa expectativa anônima se traduz em pressão impessoal, mas constante por lucro e crescimento, de preferência em pouco tempo. Tudo o mais, incluindo meio ambiente, emprego e qualidade de vida, tornam-se “exterioridade”, subordinada à demanda anônima, um objetivo que nunca é satisfeito. Todos nós participamos desse processo como trabalhadores, empregadores, consumidores e investidores, ainda que normalmente com pouco ou nenhum senso de responsabilidade moral pelo que acontece, porque tal consciência está perdida na impessoalidade do sistema.

Alguém pode argumentar, em contrapartida, que algumas corporações (geralmente com perfil familiar ou pequenas) cuidam bem de seus empregados, preocupam-se com os efeitos no meio ambiente e assim por diante. O mesmo argumento pode ser usado para escravidão: havia alguns bons senhores que cuidavam de seus escravos etc. Isso não nega o fato de que escravidão é intolerável. É simplesmente tão intolerável hoje que nosso bem-estar coletivo, inclusive a forma com a qual os “recursos” limitados do planeta são compartilhados, seja determinado pelo que é lucrativo para grandes corporações.

Em resumo, estamos acordando para o fato de que, embora corporações transnacionais possam ser economicamente lucrativas, elas são estruturadas de uma maneira que as tornam socialmente defeituosas. Não podemos resolver os problemas que elas continuam a criar focando a conduta desse ou daquele exemplo em particular (Morgan Stanley, Bank of America) porque é a própria instituição que é o problema. Dado seu poder absurdo sobre o processo político, não será fácil desafiar seu papel, mas elas têm um cordão umbilical: contratos sociais podem ser reescritos para determinar responsabilidade social e ecológica. Grupos como Network of Spiritual Progressives (Rede de Avanços Espirituais) têm advogado por uma Emenda de Responsabilidade Social e Ambiental (ESRA) à Constituição americana, que determinaria isso. Se nosso destino é continuar nas mãos corporativas, corporações devem se responsabilizar, acima de tudo, não por investidores anônimos, mas pelas comunidades nas quais estão inseridas. Talvez, o movimento Occupy Wall Street seja o começo de um movimento que levará a isso.

Ainda assim, não será suficiente. Há outra coisa em jogo, mais básica até: a visão geral que encoraja e racionaliza o tipo de pesadelo econômico do qual estamos começando a acordar. Em termos buddhistas, o problema não é apenas avareza, mas ignorância também. A teoria mais usada para justificar o capitalismo é a “mão invisível” de Adam Smith: perseguir nosso interesse pessoal na verdade beneficia a sociedade como um todo. Suspeito, porém, que os CEOs são muitas vezes motivados por algo menos positivo. Não é coincidência que a influência corporativa tenha crescido ao mesmo tempo em que a popularidade do darwinismo social, a ideologia que aplicou erroneamente a teoria evolucionista de Darwin à vida econômica e social: é uma selva lá fora e somente o mais forte sobrevive. Se fosse não se aproveitar dos outros, eles se aproveitarão de você. A evolução darwinista elimina a necessidade de um Criador e, por isso, a necessidade de seguir seus mandamentos: agora, é cada um por si…

Darwinismo social criou uma retroalimentação: quanto mais as pessoas acreditavam nele e agiam de acordo com ele, mais a sociedade se tornava uma selva darwinista social. Esse é o exemplo clássico de como nós, coletivamente, cocriamos o mundo no qual vivemos. E nisso talvez seja onde o Buddhismo possa contribuir mais porque ele oferece uma visão alternativa do mundo, com base numa compreensão mais sofisticada da natureza humana, que explica por que somos infelizes e como sermos mais felizes. Estudos psicológicos e econômicos recentes confirmam o papel destrutivo da ganância e a importância de relacionamentos sociais saudáveis, que é consistente com a ênfase buddhista sobre generosidade e interdependência.

Em outras palavras, o problema não está apenas em nosso defeituoso sistema econômico e político, ele está também na falha visão de mundo que encoraja o egoísmo e a competição em vez de comunidade e harmonia. O moderno ocidente está dividido entre um teísmo que se tornou difícil de se acreditar e uma ideologia do salve-se quem puder que piora a vida de todos nós. Felizmente, agora há outras opções.

O Buddhismo também tem algo importante para aprender do movimento Occupy Wall Street: não basta focar no despertar de nosso sonho individual. Hoje, somos chamados para despertar juntos do que se tornou um pesadelo coletivo. É hora de levar nossa prática espiritual para as ruas?

Se continuarmos abusando da terra dessa maneira, sem dúvida nossa civilização será destruída. Essa reviravolta requer iluminação, despertar. O Buddha alcançou o despertar individual. Agora, precisamos de uma iluminação coletiva para parar o curso de destruição. A civilização acabará se continuarmos a nos afogar na competição por poder, fama, sexo e lucro“. (Thich Nhat Hahn)

© 2011 David Loy

© Centro Buddhista Nalanda, 2011 ~ traduzido por amandina morbeck wvn para a Comunidade Buddhista Nalanda


David R. Loy é Besl Professor de Ética/Religião e Sociedade da Xavier University em Cincinnati, Ohio. Seu trabalho é principalmente na área de religião e filosofia comparada, particularmente comparando o pensamento buddhista com o pensamento ocidental moderno. Entre seus livros estão: Nonduality: A Study in Comparative Philosophy, Lack and Transcendence: The Problem of Death and Life in Psychotherapy, Existentialism and Buddhism, A Buddhist History of the West: Studies in Lack, The Great Awakening: A Buddhist Social Theory, e Money, Sex, War, Karma: Notes for a Buddhist Revolution. Praticante Zen por muitos anos, ele tem a qualificação de professor na tradição Sanbo Kyodan do Buddhismo Japonês, a mesma de Yasutani Roshi, Robert Aitken, Philip Kapleau e o padre Hugo Enomiya-Lassalle.

David Loy esteve conosco à  convite do Nalanda, em julho de 2010, realizando workshops em várias cidades do Brasil. Ele nos enviou este artigo sobre o atual movimento de ocupação de Wall Street do ponto de vista buddhista, extremamente atual e penetrante em sua análise de nossa sociedade moderna.

 

1 COMMENT

  1. comporações são reificações dos três venenos da cobiça, ódio e ignorância. a macro manifestação de nossa micro natureza não desperta.
    minha tendência é concordar com a margareth: não há alternativa. ao menos enquanto permanecermos não despertos. e a forma de acordar me parece estar além, ou aquém, de manifestações de massa. é no nosso pequeno dia-a-dia que precisamos nos ‘engajar’. sempre que vejo “a massa” eu vejo um amontoado de estupidez, ainda que segurando sobre as cabeças bandeiras de nobres ideais…
    divulguemos o texto mas façamos o imenso pouco que nos cabe nos tornando mais éticos, menos cobiçosos, menos competitivos, menos ignorantes da natureza das coisas. sinto que em vista deste pouco que nos cabe, carregar bandeiras e sair para as ruas é fácil demais e evidentemente inócuo como nos escancara a realidade circundante.

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