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thanissaro~ Ven. Thanissaro Bhikkhu ~

A Autenticidade dos Suttas em pāli

A tradição Theravāda, predominante no Sri Lanka, Mianmar e Tailândia, considera os suttas em pāli como o registro autêntico e confiável das próprias palavras do Buddha. Quando os estudiosos ocidentais – sensíveis a questões de autoridade e autenticidade – se depararam com essas reivindicações no século 19, começaram a empregar o método histórico para testá-las. E embora cada pedaço concebível de evidência literária ou arqueológica pareça ter sido examinado, nenhuma prova ou refutação histórica definitiva dessas reivindicações veio à tona. O que veio à tona foi uma massa de fatos menores e probabilidades – mostrando que o Cânone Pāli é, provavelmente, o mais próximo registro detalhado que temos dos ensinamentos do Buddha – mas nada mais assertivo do que isso. Evidências arqueológicas mostram que o pāli provavelmente não era a língua nativa do Buddha, mas isso é prova de que ele não usou o pāli quando falava a nativos falantes do idioma? O cânone contém irregularidades gramaticais, mas essas são sinais de uma fase inicial na língua, antes que fosse padronizado, ou de uma fase posterior de degeneração? E em que estágio de desenvolvimento da linguagem se deu a vida do Buddha? Fragmentos de outros cânones buddhistas mais antigos foram encontrados, com pequenos desvios do Cânone Pāli em sua formulação, mas não em suas doutrinas básicas. É a sua uniformidade na doutrina um sinal de que todos eles vieram do próprio Buddha, ou foi o produto de uma conspiração tardia para refazer e padronizar a doutrina de acordo com crenças e gostos mudados? Estudiosos têm se mostrado ávidos para tomar partido sobre essas questões, mas o uso inevitável de inferências, conjecturas e probabilidades em seus argumentos sopra um ar de incerteza a todo o processo.

Muitos veem tal incerteza como sinal da inadequação das alegações de autenticidade dos Theravādas. Mas ignorar os ensinamentos dos suttas só por isso seria privar-nos da oportunidade de testar o seu postulado mais significativo: o esforço humano, bem dirigido, pode pôr fim a todo sofrimento e estresse. Talvez devêssemos questionar os métodos dos historiadores e ver a incerteza de suas conclusões como um sinal da inadequação do método histórico como uma ferramenta para certificar o Dhamma. Os próprios suttas fazem esta assertiva em suas recomendações de como a autenticidade e a autoridade do Dhamma são melhor apuradas. Numa famosa passagem, eles citam o Buddha dizendo:

Kalamas, não se deixem levar pelos relatos, por lendas, pelas tradições, pelas escrituras, pela conjectura lógica, pela inferência, pela analogia, pela concordância por meio de visões ponderadas, por probabilidade ou pelo pensamento: ‘Este contemplativo é o nosso mestre’. Quando vocês souberem por vocês mesmos que ‘Esses dhammas são inábeis; esses dhammas são culpáveis; esses dhammas são criticados pelos sábios; esses dhammas, quando adotados e realizados, conduzem ao mal e ao sofrimento’ – então vocês devem abandoná-los… Quando vocês souberem por vocês mesmos que ‘Esses dhammas são hábeis; esses dhammas são irrepreensíveis, esses dhammas são elogiadas pelos sábios; esses dhammas, quando adotados e realizados, conduzem ao bem e à felicidade’ – então devem penetrar e permanecer neles”. – AN 3,65

Porque essa passagem está contida em uma escritura religiosa, as declarações que mais chamam a atenção são as sobre rejeitar a autoridade dos professores religiosos, das lendas, tradições e escrituras, juntamente com a insistência com respeito à importância de saber por si mesmo. Tais declarações notavelmente antidogmáticas – algumas vezes chamadas de Declaração do Buddha Sobre o Livre Pensamento – tendem a desviar a atenção da censura severa que a passagem sobre o “saber por si mesmo” implica. Ao questionar a autoridade de relatos, dispensa o material básico sobre o qual o método histórico é baseado. Ao questionar a autoridade da inferência e da probabilidade, ignora algumas das técnicas básicas do método. Ao questionar a autoridade da conjectura lógica, analogias e concordância por meio de visões ponderadas, rejeita os métodos do livre pensamento racionalista em geral.

Assim, restam apenas dois métodos para avaliar o Dhamma, ambos relacionados com a questão levantada nessa passagem e central para outros ensinamentos do cânone: o que é hábil, o que é inábil? No desenvolvimento de qualquer habilidade, você deve: (1) prestar atenção aos resultados de suas próprias ações e (2) ouvir aqueles que já dominam a habilidade. Da mesma forma, na avaliação do Dhamma, você deve: (1) examinar os resultados que surgem de colocar um ensino particular em prática e (2) verificar os resultados em comparação com as opiniões dos sábios.

Dois aspectos do Dhamma, no entanto, o fazem uma técnica à parte. A primeira é reflexo do fato de que a palavra Dhamma significa não só ensino, mas também qualidade da mente. Assim, aquela passagem também pode ser traduzida:

Quando vocês souberem por vocês mesmos que ‘Estas qualidades são inábeis; estas qualidades são culpáveis; estas qualidades são criticáveis pelos sábios; estas qualidades, quando adotadas e executadas conduzem ao mal e ao sofrimento’ – então vocês devem abandoná-las… Quando vocês souberem por vocês mesmos que ‘Estas qualidades são hábeis; estas qualidades são isentas de culpa; estas qualidades são elogiadas pelos sábios; estas qualidades, quando adotadas e levadas adiante, conduzem ao bem e à felicidade’ – então vocês devem penetrar e permanecer nelas”.

Na verdade essa é, provavelmente, a tradução mais correta, pois o diálogo após essa passagem se concentra nos resultados de agir sobre as qualidades da mente: ganância, aversão e ilusão do grupo inábil; e ausência de ganância, de aversão e de ilusão do hábil. Isso aponta para o fato de que a prática do Dhamma é, principalmente, uma habilidade da mente.

O segundo aspecto que coloca o Dhamma à parte como uma técnica é o seu objetivo: nada menos do que o fim total do sofrimento.

Embora esse segundo aspecto do Dhamma torne-o uma técnica atraente a se desenvolver, o primeiro aspecto torna difícil determinar quem dominou a técnica e é, portanto, qualificado para falar sobre isso com autoridade. Afinal, não podemos olhar dentro das mentes dos outros para ver que qualidades estão lá e quais são os resultados internos da prática. Na melhor das hipóteses podemos detectar indícios dessas coisas em suas ações, mas nada mais. Assim, se mirarmos os outros como sendo a palavra final sobre o Dhamma, estaremos sempre numa situação de incerteza. A única maneira de superar a incerteza é praticar o Dhamma para ver se ele traz um fim ao sofrimento dentro de nossas próprias mentes.

Tradicionalmente, os textos afirmam que a incerteza sobre o Dhamma só termina com a realização do entrar na correnteza, o primeiro dos quatro níveis do Despertar. Embora uma pessoa que tenha alcançado esse nível de Despertar não esteja totalmente imerso no fim do sofrimento, ele ou ela viu o suficiente do fim do sofrimento para saber, sem dúvida, que é onde a prática do Dhamma leva. Portanto, não é surpreendente que os quatro fatores que os suttas identificam como conducentes ao entrar na correnteza sejam também os quatro métodos que recomendam para verificar se eles próprios são um guia verdadeiramente autorizado e autêntico para o fim do sofrimento.

Estes fatores, listados em SN 55.5, são:

· associação com pessoas de integridade
· ouvir o verdadeiro Dhamma
· atenção apropriada, e
· prática de acordo com o Dhamma.

Passagens dos suttas que tratam de cada um desses fatores ajudam a mostrar como as duas fontes de habilidade – o conselho do sábio e as lições aprendidas pela observação dos resultados de suas próprias ações – podem ser adequadamente equilibradas e integradas de modo a verificar o que é o verdadeiro Dhamma. E porque ouvir o verdadeiro Dhamma agora inclui a leitura do Dhamma verdadeiro, um conhecimento desses fatores e suas inter-relações oferece orientação sobre como ler os suttas. Em particular, esses fatores mostram como os próprios suttas dizem que devem ser lidos, e que outras atitudes dão o contexto hábil para obter o máximo benefício de lê-los.

Conforme se explora as explicações desses fatores você acha que a sua apresentação como uma pequena lista é enganosamente simples, na medida em que cada fator contém elementos de outros fatores também. Por exemplo, associar-se com pessoas de integridade é de grande ajuda na prática do Dhamma, mas para alguém reconhecer pessoas de integridade genuína é preciso que ele ou ela tenha alguma experiência anterior em praticar o Dhamma. Assim, embora a forma da lista sugira uma progressão linear simples, os fatores individuais da lista estão inter-relacionadas de formas complexas. O que isso significa na prática é que o processo de avaliar o Dhamma é complexo, exigindo sensibilidade e discernimento para equilibrar e integrar os fatores de forma apropriada.

Associação com pessoas de integridade.

Como o Dhamma consiste principalmente de qualidades da mente, qualquer escrito de Dhamma é apenas uma pálida sombra da coisa real. Assim, para ganhar um sentido das dimensões totais do Dhamma, você deve encontrar pessoas que encarnam o Dhamma em seus pensamentos, palavras e atos, e associar-se com eles de uma forma que lhe permita absorver o máximo de Dhamma possível. Então, as passagens que explicam esse fator oferecem conselhos em duas áreas: como reconhecer pessoas de integridade e a melhor forma de associar-se com elas uma vez que você as tenha encontrado.

O sinal imediato de integridade é gratidão.

Uma pessoa de integridade é grata e reconhece a ajuda dada a ela. Essa gratidão, esse reconhecimento, é uma segunda natureza entre pessoas admiráveis. É, plenamente, do escopo de pessoas de integridade”. – AN 2,31

A gratidão é um sinal necessário de integridade pelo fato de que pessoas que não reconhecem e valorizam a bondade e integridade nos outros não são susceptíveis de fazer um esforço para desenvolver integridade dentro de si. Por si só, porém, gratidão não constitui integridade. A essência da integridade repousa em três qualidades: honestidade, inofensividade e discernimento.

É o caso em que um bhikkhu viva na dependência de uma determinada vila ou cidade. Então, um chefe de família ou filho de família vai até ele e observa-o com base em três qualidades mentais – qualidades baseadas na ganância, baseadas em aversão, baseadas em ilusão: ‘Há neste venerável quaisquer de tais qualidades com base na ganância… aversão… ilusão que, com sua mente superada por essas qualidades, ele possa dizer: “Eu sei”, apesar de não saber, ou dizer: “eu vejo”, enquanto não vê, ou que ele pudesse incitar outro a agir de uma maneira que seja para ele/ela danosa e dolorosa a longo prazo?’ Conforme ele observa, ele vem a saber: ‘Não há neste venerável essas qualidades… Seu comportamento verbal e corporal são os de um não ganancioso… aversivo… iludido. E o Dhamma que ele ensina é profundo, difícil de ver, difícil de perceber, tranquilo, refinado, além do escopo da conjectura, sutil, para ser experienciado pelo sábio”. – MN 95

Como mostra essa passagem, o conhecimento da veracidade de uma pessoa exige que você seja tão observador de seu comportamento que você possa confiantemente inferir a qualidade da sua mente. Esse nível de confiança, por sua vez, requer que você não só seja observador, mas também exigente e disposto a despender tempo pois, como aponta outro trecho, a aparência de integridade espiritual é fácil de simular.

Então, o rei Pasenadi de Kosala foi até o Bem-Aventurado e, na chegada, depois de cumprimentá-lo, sentou-se a um lado. Então, sete ascetas de cabelos enrolados, sete ascetas jainistas, sete ascetas nus, sete ascetas de pouco pano e sete andarilhos – suas unhas muito crescidas, o seu pelo e cabelo muito crescido a um bom tempo – passavam não muito longe do Bem-Aventurado… Ao vê-los, o rei Pasenadi arrumou o seu manto sobre um ombro, ajoelhou-se com o joelho direito no chão, saudou os ascetas com as mãos diante de seu coração e anunciou o seu nome a eles três vezes: ‘Eu sou o rei, veneráveis senhores, Pasenadi de Kosala. Eu sou o rei, veneráveis senhores, Pasenadi de Kosala. Eu sou o rei, veneráveis senhores, Pasenadi de Kosala’. Então, não muito depois dos ascetas terem passado, ele voltou-se para o Bem-Aventurado e assim, depois de cumprimentá-lo, sentou-se a um lado. Estando ele lá sentado, disse para o Bem-Aventurado: ‘Naqueles no mundo que são arahants ou no caminho para arahant, estão aqueles entre eles?’”

“Sua majestade, como um laico a desfrutar os prazeres sensuais, vivendo cheio de mulheres e crianças, usando tecidos Kasi e sândalo, usando grinaldas, perfumes e cremes, a manipular ouro e prata é difícil para você saber se estes são arahants ou se estão no caminho para o estado de arahant”.

[1] “É através da convivência que a virtude de uma pessoa pode ser conhecida, e somente após um longo período, não um período curto, por alguém que está atento, não por alguém que está desatento, por quem é discernente, não por quem não é discernente.

[2] “É através de negociar com uma pessoa que sua pureza pode ser conhecida…

[3] “É através da adversidade que a tolerância de uma pessoa pode ser conhecida…

[4] “É através da discussão que o discernimento de uma pessoa pode ser conhecido, e somente após um longo período, não um período curto, por alguém que está atento, não por alguém que está desatento, por quem é discernente, e não por quem não é discernente”.

“Que maravilhoso, senhor! Quão formidável! Quão bem foi colocado pelo Bem-Aventurado!… Estes homens, senhor, são meus espiões, meus olheiros, retornando depois de andar pelo interior. Eles vão primeiro e então eu vou. Assim, quando eles limparam a sujeira e a lama, são banhados e perfumados, têm seu cabelo e barbas cortados e postos em roupas brancas, eles seguem dotados e equipados com as cinco cordas de sensualidade”. – Ud 6,2

Em AN 4,192 esses pontos são desenvolvidos indicando que a capacidade de reconhecer uma pessoa de integridade exige que você tenha um forte senso de integridade em si mesmo. Na verdade, em MN 110 é insistido que você deve ser uma pessoa de integridade em suas ações, visões e nas amizades para você reconhecer a integridade de outros.

Ouvir o Verdadeiro Dhamma

Uma vez que você tenha estabelecido com o melhor de sua capacidade que certas pessoas encarnam a integridade, os suttas aconselham a ouvir o seu Dhamma, tanto para aprender sobre eles – para continuar a testar a sua integridade – quanto para aprender com eles, para obter um sentido do que possa ser o Dhamma. E, novamente, os suttas recomendam tanto como ouvir o Dhamma quanto como reconhecer o Dhamma verdadeiro quando você ouvi-lo.

MN 95 recomenda que você despenda tempo junto de pessoas de integridade, desenvolva um senso de respeito por elas, e preste muita atenção ao seu Dhamma.

SN 6,2 e de 8,2 explica o propósito do respeito aqui: é um pré-requisito para a aprendizagem. Nenhuma passagem elabora esse ponto, mas a sua verdade é bastante óbvia. Você acha mais fácil aprender com alguém que você respeita do que com alguém que não respeita. O respeito abre sua mente e afrouxa suas opiniões preconcebidas de modo que haja espaço para novos conhecimentos e habilidades. Ao mesmo tempo, uma pessoa com um ensinamento valioso para oferecer vai se sentir mais inclinada a ensiná-lo a alguém que demonstre respeito do que a alguém que não o faça. No entanto, respeito não significa necessariamente dar a sua aprovação total ao ensinamento. Afinal de contas, parte do propósito de ouvir o Dhamma é testar se a pessoa que ensina tem integridade em seus pontos de vista. A aprovação plena só pode vir quando você colocar o ensinamento em prática e provar seus resultados. É por isso que o Vinaya, a disciplina monástica, nunca requer que o estudante tome votos de obediência a um professor. Aqui o respeito significa, nas palavras do Sn 2,9, ausência de inflexibilidade. Ou, nas palavras de AN 6,88, “a paciência de cumprir o ensinamento”: a vontade de ouvir com a mente aberta e despender o tempo e o esforço necessários para fazer, com quaisquer ensinamentos que pareçam razoáveis, uma tentativa séria.

A razoabilidade do ensino pode ser mensurada pelo princípio central à vista da integridade como foi explicado anteriormente MN 110. Tal princípio é a convicção no kamma, a eficácia do agir humano: que as pessoas são responsáveis por suas ações, que suas intenções determinam a qualidade – a habilidade ou inabilidade – de suas ações, que as ações dão resultados, e que a qualidade da ação determina a qualidade do resultado. Uma pessoa que não acredita nesses princípios não pode ser confiável.

Como a distinção entre habilidade e inabilidade é fundamental no princípio do kamma – e também para a empreitada de colocar um fim ao sofrimento e estresse – MN 135 recomenda aproximar-nos de potenciais professores e pedir-lhes:

O que é hábil? O que é inábil? O que é censurável? O que é não censurável? O que deve ser cultivado? O que não deve ser cultivado? O que, tendo sido feito por mim, será para o meu dano e sofrimento em longo prazo? Ou o que, tendo sido feito por mim, será para o meu bem-estar e felicidade em longo prazo?”

Os textos dão alguns exemplos do que pode ser chamado de o mínimo denominador comum para julgar se as respostas para essas perguntas representam a integridade. Em essência, tais ensinamentos constituem “o que é funcional” para a eliminação de níveis flagrantes de sofrimento e estresse na vida de alguém.

Assim, o que é inábil? Tirar a vida é inábil, tomar o que não é dado… má conduta sexual… mentir… linguagem grosseira… conversa divisionista… tagarelice é inábil. A cobiça… a má vontade… visões errôneas são inábeis. Essas coisas são chamadas de inábeis.

“E quais são as raízes das coisas inábeis? A ganância é uma raiz das coisas inábeis, a aversão é uma raiz das coisas inábeis, ilusão é uma raiz das coisas inábeis. Esses são denominados as raízes das coisas inábeis.

“E o que é hábil? Abster-se de tirar a vida é hábil, abster-se de tomar aquilo que não é dado… de má conduta sexual… de mentir… da linguagem grosseira… da conversa divisionista… abster-se de tagarelice é hábil. Ausência de cobiça… ausência de má intenção… visões corretas são hábeis. Tais coisas são denominadas hábeis.

“E quais são as raízes das coisas hábeis? Ausência de desejo é uma raiz das coisas hábeis, ausência de aversão é uma raiz das coisas hábeis, ausência de ilusão é uma raiz das coisas hábeis. Esses são denominados raízes das coisas hábeis”. – MN 9

“Estas três coisas foram proclamadas por pessoas sábias, por pessoas que são verdadeiramente boas. Quais três? A generosidade… o abandonar [da vida no lar]… e servir à mãe e ao pai. Essas três coisas foram proclamadas por pessoas sábias, por pessoas que são verdadeiramente boas”. – AN 3,45

No entanto, o verdadeiro Dhamma tem uma dimensão que vai muito além do menor denominador comum. Para repetir as palavras do MN 95, ele é “profundo, difícil de ver, difícil de perceber, tranquilo, refinado, além do escopo da conjectura, sutil, para-ser-experimenciado pelos sábios”. O princípio da habilidade – de causa e efeito que pode ser testado nas próprias ações da pessoa – ainda se aplica nessa dimensão, mas os padrões para “o que funciona” nesse nível são proporcionalmente mais sutis e refinados. Duas passagens famosas indicam o que são tais padrões.

Gotami, os dhammas dos quais você possa saber: ‘Estes dhammas conduzem – ao apego, não ao desapego; a estar agrilhoado, não a estar livre dos grilhões; ao acúmulo, não ao abandono; ao auto-engrandecimento, não à modéstia; ao descontentamento, não ao contentamento; ao enredamento, não à reclusão; à preguiça, não à energia entusiasmada; a ser tenso, não a ser leve’, você pode assegurar categoricamente: ‘Este não é o Dhamma, este não é o Vinaya, estas não são as instruções do Mestre’.

“Quanto aos dhammas dos quais você possa saber: ‘Esses dhammas conduzem – ao desapego, não ao apego; a estar livre dos grilhões, não a estar agrilhoado; ao abandono, não ao acúmulo; à modéstia, não ao auto-engrandecimento; ao contentamento, não à insatisfação; à reclusão, não ao enredamento; à energia entusiamada, não à preguiça; à leveza, não à tensão’, você pode assegurar categoricamente: ‘Este é o Dhamma, isto é o Vinaya, estas são instruções do Mestre’”. – AN 8,53

“Upali, os dhammas dos quais você possa saber: ‘Estes dhammas não conduzem ao desencantamento consumado, ao desapego, à cessação, à paz, ao conhecimento direto, ao auto-despertar nem à Libertação’: Você pode assegurar categoricamente: ‘Este não é o Dhamma, este não é o Vinaya, estas não são as instruções do Mestre’.

“Quanto aos dhammas dos quais você possa saber: ‘Estes dhammas conduzem ao desencantamento consumado, ao desapego, à cessação, à paz, ao conhecimento direto, ao auto-despertar, a Nibbana’: Você pode assegurar categoricamente: ‘Este é o Dhamma, este é o Vinaya, estas são as instruções do Mestre’”. – AN 7,79

AN 8,30 expande alguns dos princípios da primeira dessas duas passagens. Mas aqui vamos nos concentrar nos pontos onde elas se conectam – na exigência de que o Dhamma conduza ao desapego e a ser não agrilhoado – como o teste padrão para uma verdadeira experiência do Despertar que surge a partir do desapego e corta os grilhões da mente.

Existem esses dez grilhões… Visão da existência do ego, incerteza, apego a preceitos e práticas, desejo sensual e má intenção. Esses são os cinco grilhões inferiores. E quais são as cinco grilhões superiores? Apego pela forma, apego pelo sem forma, presunção, inquietação e ignorância. Estes são os cinco grilhões superiores”. – AN 10,13

Como o MN 118 explica, aquele que entrou na corrente dissipa os três primeiros grilhões; o segundo nível do Despertar, aquele em que se retorna uma vez, enfraquece o apego, a aversão e a ilusão; o terceiro nível, aquele do não-retorno, dissipa os grilhões do desejo sensual e da má intenção; e o do arahant, o nível final do Despertar, dissipa os cinco restantes.

Em última análise, claro, a única prova para saber se um ensinamento leva nessa direção surge quando, depois de colocar o ensinamento em prática, você realmente começa a dissipar aqueles grilhões da mente. Mas, como um exercício preliminar, você pode contemplar um ensino para buscar sentido nele e saber se há boas razões para acreditar que vai levar na direção certa.

“Ouvindo o Dhamma, se recorda. Recordando, penetra-se o significado desses dhammas. Penetrando o significado, chega-se a um entendimento através de ponderar esses dhammas. Havendo um entendimento através de ponderar os dhammas, a aspiração surge. Com o surgimento da aspiração, torna-se disposto. Estando disposto, contempla-se (lit: ‘pesa’, ‘compara’).” – MN 95

O processo de ponderação, de pesagem e comparação dos ensinamentos baseia-se em adotar a atitude adequada e em fazer as perguntas corretas sobre eles. Como o AN 2,25 aponta, alguns dos ensinamentos destinam-se a ter o seu significado inferido, enquanto outros não, e não compreender bem a qual dessas duas classes um ensinamento particular pertence é um grave erro. Aqui é onde o próximo fator para entrar na correnteza desempenha um papel.

Atenção adequada

O MN 2 demarca a linha entre a atenção adequada e inadequada em função das perguntas que você escolher para seguir na contemplação do Dhamma.

“É o caso em que um não instruído, uma pessoa que segue o mundo… não discerne quais ideias merecem atenção ou quais ideias não merecem atenção… Desta forma ele atenta de forma inadequada: ‘Eu era no passado? Eu não era no passado? O que eu era no passado? Como eu era no passado? Tendo sido assim, o que eu fui no passado? Serei no futuro? Não serei no futuro? O que serei no futuro? Como serei no futuro? Sendo assim, o que serei no futuro?’ Ou então ele fica em seu íntimo perplexo com respeito ao presente: ‘Eu sou? Não sou? O que sou eu? Como sou eu? De onde veio este ser? Onde é que está atado?’

“Como ele atenta de forma inadequada dessa forma, um de seis tipos de visão surge nele: A visão de que eu tenho um eu permanente surge como verdadeira e estabelecida, ou a visão eu não tenho um eu permanente… ou a visão é por meio do eu permanente que percebo o eu permanente… ou a visão É por meio do eu permanente que percebo o não eu permanente… ou a visão é por meio do não- eu permanente que percebo o eu permanente surge como verdadeira e estabelecida, ou então ele tem uma visão como esta: Este meu eu permanente – o conhecedor que é sensório aqui e ali para o amadurecimento de boas e más ações – é este o meu eu que é constante, permanente, eterno, não sujeito a mudança, e irá durar tanto quanto a eternidade. Isto é chamado de um emaranhado de ideias, um deserto de ideias, uma contorção de pontos de vista, uma distorção de visão, um grilhão da visão. Aprisionado pelo grilhão da visão, a pessoa não instruída seguidora do mundo não é libertada do nascimento, envelhecimento e morte, da tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero. Ele não é libertada, eu vos digo, do estresse.

“O discípulo bem instruído pelos nobres… discerne quais são as ideias próprias para dar atenção, e quais as ideias não merecem atenção… Ele atenta de forma adequada: Isto é sofrimento… Esta é a origem do sofrimento… Esta é a cessação do sofrimento… Este é o caminho que conduz à cessação do sofrimento. Como ele atenta desta forma adequada, três grilhões são abandonados: a visão da identidade independente, a dúvida e o apego a preceitos e práticas”. – MN 2

Algumas das controvérsias mais inúteis na história do pensamento buddhista vieram de ignorar este ensinamento sobre o que é e o que não é um objeto apropriado para a atenção. Os buddhistas têm debatido inutilmente durante séculos, e continuam a debater atualmente, sobre como definir a identidade de uma pessoa – a resposta à pergunta “O que sou eu?” – Ou se uma pessoa tem ou não tem um eu permanente – a resposta para as perguntas, “eu sou? eu não sou?” A inutilidade destes argumentos tem provado repetidamente o apontamenmto feito por essa passagem: que qualquer resposta dada a essas perguntas leva a um emaranhamento nos exatos grilhões os quais o Dhamma se propõe a eliminar.

Para evitar tais controvérsias, a passagem recomenda o foco em quatro verdades que constituem o objeto apropriado para a atenção – o sofrimento, a sua origem, sua cessação e o caminho que conduz à sua cessação. Essas verdades são diretamente relacionadas à questão da habilidade, que divide a realidade em dois conjuntos de variáveis: causa e efeito, hábeis e inábeis. A origem do sofrimento é uma causa inábil e sofrimento é o seu resultado. O caminho que conduz à cessação do sofrimento é uma causa hábil, e a cessação do sofrimento é o seu resultado. Olhar para a experiência nesses termos é atentar adequadamente de uma forma que pode ajudar a eliminar os grilhões que sustentam a inabilidade da mente.

Por exemplo, o SN 56.11 define a verdade do sofrimento como sendo os cinco agregados do apego – apego à forma, sensação mental, percepção, formações e consciência – e sustenta que essa verdade deve ser compreendida de forma a levar ao desapego pelo apego. Isso, também, é uma função da atenção apropriada.

“Um monge virtuoso deve atentar de forma adequada a esses cinco agregados tomados pelo apego como impermanentes, sofrimento, uma doença, um câncer, uma flecha, doloroso, uma aflição, algo estranho, uma dissolução, um vazio, não-eu. Pois assim é possível que um monge virtuoso, atentando de forma adequada a esses cinco agregados tomados pelo apego como impermanentes… não-eu, realize o fruto do entrar na correnteza”. SN 22.122

Assim, a devida atenção implica num modo de olhar o Dhamma não apenas como ele é apresentado em um ensinamento, mas também como ele se apresenta como experiência direta para a mente.

Prática de acordo com o Dhamma.

Uma vez que você obteve um sentido do Dhamma através da atenção apropriada o passo que resta é praticar de acordo com o Dhamma. Tal como acontece com os dois primeiros fatores para o entrar na correnteza, este processo é duplo: adaptar suas ações para seguir em linha com o Dhamma (ao invés de tentar adaptar o Dhamma para seguir suas próprias preferências), e refinar o seu entendimento do Dhamma conforme for testado através da experiência.

MN 61 dá instruções explícitas sobre como isso deve ser feito.

“O que você acha, Rahula: Para que serve um espelho?” “Para refletir, senhor”. “Da mesma forma, Rahula, ações corporais, ações verbais e ações mentais devem ser feitas com repetida reflexão.

“Sempre que você quiser realizar uma ação corporal, você deve refletir a respeito: ‘Esta ação corporal que quero cometer – conduzirá à minha própria aflição, à aflição de outros ou a ambos? É uma ação corporal inábil, com consequências dolorosas, resultados dolorosos?’ Se, assim refletindo, você sabe que isso levará à sua própria aflição, à aflição de outros ou a ambos, seria uma ação inábil com consequências dolorosas, resultados dolorosos, então qualquer ação corporal desse tipo é totalmente inadequada para você cometer. Porém se refletindo você sabe que isso não causará aflição… será uma ação corporal habilidosa com consequências felizes, resultados felizes, então qualquer ação corporal desse tipo é adequada para você cometer.

“Enquanto você estiver cometendo uma ação corporal, você deveria refletir a respeito: ‘Esta ação corporal que estou cometendo – conduzirá à minha própria aflição, à aflição de outros ou a ambos? É uma ação corporal sem inábil, com consequências dolorosas, resultados dolorosos?’ Se, assim refletindo, você sabe que esta conduz a própria aflição, à aflição de outros ou ambos… você deve abandonar tal ação. Porém, se assim refletindo, você sabe que não é… você pode mantê-la.

“Tendo cometido uma ação corporal, você deve refletir sobre ela… Se, assim refletindo, você souber que conduziu à sua própria aflição, à aflição de outros ou a ambos, que foi uma ação inábil com consequências dolorosas, resultados dolorosos, então você deve confessá-la, revelá-la, revelá-la para o Mestre ou para um sábio companheiro na vida santa. Tendo confessado… você deve exercer o autodomínio no futuro. Porém se, assim refletindo, você sabe que não conduziu à aflição… que foi uma ação corporal hábil com consequências felizes, resultados felizes, então você deve se sentir mentalmente renovado e contente, treinando dia e noite nas qualidades mentais hábeis.

[Da mesma forma para ações verbais e mentais, embora o último parágrafo relativo às mentais diga:]

“Após ter cometido uma ação mental, você deve refletir sobre isso… Se, assim refletindo, você souber que conduziu à sua própria aflição, à aflição de outros ou a ambos, que foi uma ação mental inábil, com consequências dolorosas, resultados dolorosos, então você deve se sentir angustiado, envergonhado e enojado por ela . Sentindo-se angustiado… você deve exercer autodomínio no futuro. Porém, se assim refletindo você sabe que não conduziu à aflição… que foi uma ação mental hábil com consequências felizes, resultados felizes, então você deve se sentir mentalmente renovado e contente, treinando dia e noite nas qualidades mentais benéficas”. MN 61

O processo de autoexame recomendado nessa passagem inclui os princípios discutidos no âmbito dos primeiros três fatores para o entrar na correnteza. Você presta atenção adequada às suas próprias intenções e ações, e seus resultados, para ver se eles se qualificam como hábeis ou inábeis. Se você perceber que alguma de suas ações corporais ou verbais levaram a resultados prejudiciais, você se aproxima de uma pessoa de integridade e ouve seu conselho. Desta forma, você combina os dois princípios que o Iti 16 e 17 recomendam como os princípios, internos e externos, mais úteis para o despertar: a atenção adequada e a amizade com pessoas admiráveis. Não é por acaso que esses são precisamente os dois princípios recomendados no discurso para os Kalamas.

O autoexame desse tipo, no entanto, compartilha ainda outra característica com o primeiro fator para o entrar na correnteza: a necessidade de integridade. Assim como sua integridade é um pré-requisito para a sua capacidade de detectar a integridade de outros, também é um pré-requisito para a sua capacidade de avaliar a verdadeira natureza de suas intenções e os resultados de suas ações. Essas são comumente as duas áreas de experiência onde as pessoas são menos honestas consigo mesmas. No entanto, para a sua prática estar de acordo com o Dhamma, você deve resistir a qualquer tendência habitual de ser menos do que absolutamente escrupuloso sobre elas. É por isso que, como um prefácio para o conselho acima, o sutta apresenta o Buddha discorrendo sobre a importância da veracidade como a qualidade mais importante para uma pessoa no Caminho.

Embora Rahula tenha recebido o conselho acima quando era criança, MN 19 sustenta que os princípios que ele contém podem conduzir por todo o Caminho até ao pleno Despertar. Isto significa, é claro, que podem levar ao primeiro nível do Despertar, que é o entrar na correnteza.

O entrar na correnteza é frequentemente chamado de o surgimento do olho do Dhamma. O que o Entrante na Corrente vê com este olho do Dhamma é sempre expresso nos mesmos termos: “Tudo o que está sujeito ao surgimento está sujeito à cessação”. Uma passagem do Vinaya mostra que o conceito “tudo o que está sujeito ao surgimento” ocorre em conjunto com um vislumbre do que está em oposição a “tudo o que está sujeito ao surgimento’ – em outras palavras, o Não-Fabricado: a Não-morte.

[Imediatamente após entrar na correnteza] Sāriputta, o Andarilho, foi até onde Moggallana, o Andarilho, estava. Moggallana, o Andarilho, o viu chegando de longe e, ao vê-lo, disse: “Suas faculdades estão radiantes, meu amigo, sua tez pura e clara. Poderia ser que você tenha atingido da Não-morte?”

“Sim, meu amigo, eu atingi…” Mv 1.23.5

Os suttas descrevem a experiência da Não-morte apenas em termos abreviados. O que há de pouca descrição pretende mostrar que a Não-morte está além da maioria das categorias linguísticas. No entanto, existem algumas indicações que mostram o que a Não-morte não é.

Para começar, ela não pode ser descrita como um estado qualquer de ser ou não-ser.

Com a interrupção continuada e o desvanescimento das seis esferas do contato [visão, audição, olfato, paladar, tato e mente] há mais alguma coisa?

Sāriputta: Não diga isso, meu amigo.

MahaKotthita: Com a interrupção continuada e o desvanescimento das seis esferas do contato não existe coisa alguma?

Sāriputta: Não diga isso, meu amigo.

MahaKotthita: … é o caso de que haja e não haja mais coisa alguma?

Sāriputta: Não diga isso, meu amigo.

MahaKotthita:… é o caso de que nem exista, nem não exista algo mais?

Sāriputta: Não diga isso, meu amigo.

MahaKotthita: Sendo perguntado… se há mais alguma coisa, você diz: ‘Não diga isso, meu amigo’. Sendo perguntado… se não há mais nada… se ambos, existe e não existe qualquer coisa… se nem existe nem não existe qualquer coisa, você diz: ‘Não diga isso, meu amigo’. Agora, como o significado desta declaração deve ser entendido?

Sāriputta: Dizendo… é o caso de que há algo… é o caso de que não há mais nada… é o caso de ambos… é o caso de que nem existe, nem não existe algo, se está objetificando não-objetificando. No entanto quão longe vão as seis esferas do contato é o quão longe vai a objetivação. No entanto, quão longe vai a objetivação é quão longe vão as seis esferas do contato. Com a interrupção continuada e o desvanescimento das seis esferas do contato, há a cessação, o alívio da objetivação. AN 4,174

Em segundo lugar, a dimensão da Não-morte não é desprovida de consciência, embora a consciência então deva ser, por definição, para além da consciência incluída nos cinco agregados da experiência fabricada.

“Monges, essa dimensão deve ser conhecida onde o olho (visão) cessa e a percepção (notação mental) da forma desaparece. Essa dimensão deve ser conhecida onde o ouvido para e a percepção do som desaparece… onde o nariz para e a percepção do aroma desaparece… onde a língua para e a percepção do sabor desaparece… onde o corpo para e desaparece a percepção da sensação tátil… onde o intelecto para e a percepção de ideia / fenômeno desaparece: Essa dimensão deve ser conhecida”. – SN 35,117

“Tendo diretamente conhecido a extensão da designação e a extensão dos objetos de designação, a extensão da expressão e a extensão dos objetos de expressão, a extensão da descrição e a extensão dos objetos de descrição, a extensão do discernimento e a extensão dos objetos de discernimento, a extensão em que o ciclo gira: Tendo isto diretamente conhecido, o monge é liberado. [Ou seja] ‘O monge libertado, tendo diretamente conhecido isto, não vê, não sabe, em sua opinião ‘isto seria um erro’”. DN 15

“Consciência sem característica, sem fim, luminoso ao redor: Aqui água, terra, fogo e ar não tem nenhum fundamento. Aqui longo e curto, grosso e fino, belo e feio, nome e forma são todos levados a um fim. Com a suspensão do [agregado da] consciência, cada um é aqui trazido a um fim”. DN 11

“Consciência sem característica, sem fim, totalmente luminosa, não participa da solidez da terra, da liquidez da água, da radiância do fogo, do movimento do ar, da divindade dos devas (e assim por diante através de uma lista de vários níveis de divindade) a totalidade do Todo (isto é, das seis esferas dos sentidos)”. – MN 49

“Mesmo assim, Vaccha, qualquer forma… sensação mental… percepção… formação… consciência… pela qual se descreva o Tathāgata, deveria ser desta forma descrito: que o Tathāgata o abandonou, sua raiz destruída, feitas como um toco de palmeira, privado das condições para seu desenvolvimento, não destinado a um futuro surgimento. Livre da classificação de forma… sensação mental… percepção… formação… consciência, Vaccha, o Tathāgata é profundo, ilimitado, difícil de apreender, como o oceano”. -MN 72

“Livre, dissociado e libertado de dez coisas, Bahuna, o Tathāgata permanece com a consciência não restringida. Quais 10? Liberto, dissociado e emancipado da forma, o Tathāgata permanece com a consciência sem restrição. Liberto, dissociado e emancipado das sensações mentais… da percepção… de formações… da consciência… do nascimento… do envelhecimento… da morte… do estresse… Liberto, dissociado e liberado de impurezas, o Tathāgata permanece com a consciência sem restrição.

“Assim como lótus vermelho, azul ou branco nascidos na água e que crescem na água, erguem-se acima da água sem a água aderir a eles, da mesma forma o Tathāgata – liberado , dissociado e liberado a partir destas dez coisas – vive com a consciência sem restrição”. AN 10,81

Essas não são palavras de uma pessoa que encontrou a libertação na inconsciência.

Finalmente, embora a Não-morte seja às vezes chamada consciência sem características, sem fim, isto não deve ser confundido com a fase da concentração sem forma chamada dimensão da infinitude da consciência. Uma das principais diferenças entre os dois é que a dimensão da infinitude da consciência é fabricada e intencionada (veja MN 140). O elemento intenção, porém, pode ser muito atenuado enquanto se está nessa dimensão, e só o discernimento em um nível extremamente sutil pode revelá-lo. Uma maneira de testar isso é ver se há qualquer sentimento de identificação com o conhecimento. Se houver, então ainda há a presunção de eu-fazer e meu-fazer aplicada a esse estado. Outro teste é ver se há algum sentido de que o conhecer contém todas as coisas ou é a sua fonte. Se houver, então ainda há fabricação em tal estado mental, pois quando a Não-morte é completamente compreendida o sentido de consciência sem restrição como contendo ou agindo como fonte de outras coisas é visto como um conceito ignorante.

“Não é o caso, monges, onde uma pessoa mundana sem instrução… percebe Libertação como Libertação. Percebendo Libertação como Libertação, ela concebe coisas sobre Libertação, ela concebe coisas na Libertação, ela concebe coisas originadas da Libertação, ela concebe Libertação como ‘minha’, ela se deleita na Libertação. Por que isso? Porque ele não compreendeu, eu vos digo…

“Um monge que é um arahant, desprovido de elucubrações mentais – que atingiu a consumação, terminou a tarefa, depôs a carga, alcançou o verdadeiro objetivo, destruiu os grilhões do vir a ser e é liberado através do conhecimento correto… conhece diretamente a Libertação como Libertação. Conhecendo diretamente a Libertação como Libertação ele não concebe coisas sobre a Libertação, não concebe coisas na Libertação, não concebe coisas originadas da Libertação, não concebe Libertação como ‘minha’, não se deleita na Libertação. Por que isso? Porque ele compreendeu, eu vos digo”. MN 1

No entanto, de acordo com as instruções para Gotami e Upali, o verdadeiro teste de uma experiência de entrada na corrente não está na sua descrição, mas nos resultados que produz. Os textos descrevem isto de duas formas: quatro fatores que caracterizam uma pessoa que entrou na corrente e três grilhões que o entrante na corrente extirpa automaticamente.

Os quatro fatores são, de acordo com AN 10.92, a convicção inabalável no Buddha, a convicção inabalável no Dhamma, a convicção inabalável na Sangha, e “virtudes que são valiosas para os nobres – não fragmentado, ininterrupto, sem mácula, não estagnado, libertado, louvado pelo sábio, sem mancha, conducente à concentração”. Os três grilhões são: visão de egocentricidade, dúvida e apego a preceitos e práticas.

As duas listas têm a sua base comum na experiência do caminho para o entrar na correnteza. Como o caminho – o nobre caminho óctuplo – produz o fruto do entrar na correnteza, você vê que, embora o agir ordinário possa levar a resultados agradáveis, desagradáveis ou mistos no nível da experiência composta, o nobre caminho óctuplo é uma forma de ação que não produz qualquer destes resultados mas, em vez disso, leva ao fim da ação (ver AN 4,237). Essa experiência extirpa qualquer dúvida sobre a verdade do Despertar do Buddha, garantindo assim que sua convicção no Buddha, no Dhamma e na Sangha não vacile mais. Tendo visto os resultados que o agir ordinário têm no nível composto, no entanto, você não ousaria transgredir os cinco preceitos que encarnam as virtudes louvadas pelos nobres (veja AN 8.39). Ainda, uma vez que a Não-morte é o fim da ação, você não adere a preceitos e práticas como o objetivo em si. E porque viu os agregados da forma, sensação mental, percepção, formação e consciência desaparecerem na experiência da Não-morte, você nunca iria construir uma visão de identidade em torno deles.

Embora as listas tradicionais dos resultados do entrar na correnteza estabeleçam normas rígidas para julgar sua própria realização, os textos – e tradições buddhistas de hoje – registram muitos exemplos de pessoas que superestimaram sua realização. Assim, quando você tem o que parece ser uma realização desse tipo, você tem que examiná-la cuidadosamente e testar a mente para ver se os três grilhões foram realmente extirpados. E porque a realização em si é o que comprova ou desmente a autoridade e autenticidade dos textos, bem como a integridade de seus professores, você tem, em última instância, apenas uma garantia de sua realização: a sua própria integridade, o que você espera que tenha sido adequadamente desenvolvido ao longo do caminho. De acordo com o princípio de que o Dhamma é ao final uma qualidade da mente integrada na pessoa como um todo, a única maneira que você pode finalmente avaliar a verdade do Dhamma é se você como pessoa é veraz.

Pelo fato de a realização do entrar na correnteza poder fazer uma diferença tão grande em sua vida, vale a pena cada gota de integridade necessária para alcançá-la e determinar sua realização.

Então o Bem-Aventurado, pegando um pouco de pó com a ponta da unha, disse aos monges:           “O que vocês pensam, bhikkhus? Qual é maior: o tanto de poeira que eu peguei com a ponta da minha unha, ou a grande terra?”

“A grande terra é muito maior, senhor. O pouco de poeira que o Bem-Aventurado pegou com a ponta da unha é quase nada. Não é um centésimo, um milésimo, um centésimo de milésimo … quando comparada com a grande terra”.

“Da mesma maneira, monges, para um discípulo dos nobres, que é consumado na visão, um indivíduo que atravessou [para entrar na correnteza], o sofrimento e o estresse totalmente cessados e extintos é muito maior. Para aqueles que estão no estado de obter mais sete vidas são quase nada: não é um centésimo, um milésimo, um centésimo de milésimo, quando comparado com a massa anterior de sofrimento. Assim é como é o grande benefício de atravessar para o Dhamma, monges. Assim é quão grande é o benefício de obter o olho Dhamma”. SN 13.1

Para uma pessoa que foi aliviada desse tanto de sofrimento, a questão do Buddha histórico torna-se irrelevante. Se a Não-morte genuíno não é a realização do Buddha histórico, é o que um Buddha genuíno teria atingido. O Dhamma que conduziu a essa realização não poderia ter vindo de qualquer outra pessoa. Como SN 22.87 narra como fala do Buddha: “Aquele que vê o Dhamma me vê”, ou seja, o aspecto de Buddha é o que realmente importa, o aspecto que sinaliza que aquela liberdade total, o total fim do sofrimento, é um objetivo atingível.

A total soberania sobre a terra até o céu, o senhorio sobre todos os mundos: o fruto do entrar na correnteza supera-os. Dhp 178

Essas são afirmações audaciosas e elas, obviamente, requerem uma abordagem mais audaciosa do que o método histórico para testá-las. Como os suttas indicam, nada menos do que a genuína integridade do caráter, desenvolvida por meio de treinamento e prática cuidadosos, será suficiente. Dado que “dhamma” significa tanto o ensino quanto a qualidade da mente, é lógico que a veracidade do caráter é necessária para medir a verdade do ensinamento. Somente pessoas verdadeiras podem conhecer a verdade das alegações dos suttas. Isso pode parecer uma coisa excludente ou elitista de dizer, mas na verdade não é. O tipo de educação necessária para dominar o método histórico não é aberta a todos, mas a integridade é – se você quiser desenvolvê-la. Os suttas dizem que as melhores coisas da vida estão disponíveis para aqueles que são verdadeiros. A única questão é se você é verdadeiro o suficiente para querer saber se eles estão certos.

© Thanissaro Bhikkhu

© tradução do inglês de Jorge Luiz Furtado para o Centro Buddhista Nalanda, 2012

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Thanissaro Bhikkhu
Thanissaro Bhikkhu, também conhecido como Ajahn Geoff, nasceu em1949 e é um monge buddhista americano da Ordem Dhammayut (Dhammayutika Nikaya), da tradição das florestas da Thailândia. Atualmente é o abade do Metta Forest Monastery em San Diego. Thanissaro Bhikkhu é um prolífico autor e tradutor de muitos livros